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Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Pão e tinta

Crítica da peça Gólgota Picnic, de Rodrigo García

MITsp 2014

 

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

 

As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

14 de março de 2014

Introdução.

É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.

Público caído.
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?

Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique.
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.

Toma que o calvário é teu.
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.

O pão espetacularizado.
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.

O corpo coberto por tintas e significados.
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.

A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatr