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Fiac segue na inquietude de seu tempo

Foto: Leonardo Pastor
Espetáculo Nós, do Grupo Galpão abriu o festival baiano de 2016. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

“Para onde ir?”, debate-se o Grupo Galpão, num movimento interno de autopurgação, que também provoca pequenos abalos sísmicos pelo país com o espetáculo Nós. Os atores vibram sobre convivência em grupo, diferenças, tolerâncias e afetos alçados ao limite. Mas também pulsam nas cordas da ambivalência, de um ethos desnudado frente ao público e que revela as contradições do mundo contemporâneo.

A peça Nós é a 23ª produção da trupe mineira em 34 anos de existência. O trabalho dirigido por Marcio Abreu – encenador da Companhia Brasileira de Teatro – com dramaturgia construída coletivamente e texto assinado por Eduardo Moreira e pelo diretor, traduz inquietações dos seus integrantes, os atores Eduardo Moreira, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara.

Já no início da peça, a trupe chama para a ideia de comunhão, quando Teuda Bara entoa “comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida, respirando o mesmo ar”, versos de Lama, de Paulo Marques e Ailce Chaves, um dos sambas-canções mais celebrados no repertório de fossa, gravado por Linda Rodrigues, Gilda Valença (em forma de fado), Maria Bethânia e Núbia Lafayette.

Essa ideia de confraria se faz presente na preparação da sopa, na frase cênica de Teuda Bara “É pra refrescar!”, que salienta a importância do encontro. As conversas entrecortadas aceleram para outros caminhos, de repetições, perguntas, coreografias. Para conjecturar sobre o espaço da partilha, da confraternização, de estar junto, da vontade da maioria, do respeito à minoria. A encenação Nós também rasga os tecidos da violência que contagiou o mundo e toca na crise da esquerda brasileira.

Numa cena emblemática do espetáculo, a personagem de Teuda Bara é escorraçada, expulsa de forma agressiva, à base de sopapos e pontapés, apesar de sua resistência. É possível associar a cena ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff, mesmo que tenha sido criada antes do impeachment. É um momento angustiante que traça um arco da política do micro ao macro.

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Eduardo Moreira e Teuda Bara. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

A encruzilhada que a pergunta inicial suscita, reforçada pela expulsão de Teuda Bara, me incitou a seguir reflexões de pensadores para tentar entender questões caras cravadas em nossa carne pela eletrizante performance do grupo. Enxergo espelhada na cena uma crítica da ética indolor, na perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que vem na esteira do esgotamento dos ideais e do declínio da moral. Com o self interest do sujeito exaltado por Lipovetsky o dever é diminuído às rés do chão nessa sociedade pós-dever, sem obrigações difíceis.

Contra o minimalismo ético de Lipovetsky (fincado na exaltação dos desejos, do ego, do individualismo hedonista e narcisista), pulsam na cena lampejos do que o teórico da “modernidade líquida”, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “ser-para”, de que existe uma responsabilidade para com o outro, da alteridade.

Então, mesmo diante desse cenário movediço de incerteza e de relativismo moral, de ligações e de desligamentos, em que as pessoas se constroem e desmancham-se, há uma corrente que defende que não somos meros objetos a serem descartados. A construção da democracia no jogo cotidiano se faz também do atrito entre figuras diferentes. A peça Nós pergunta antes de tudo terminar: como recomeçar ou começar algo novo? Alguma esperança na seara dos afetos, com o espelho refletindo o espectador antes do chamamento para a balada.

O espetáculo Nós abriu o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – Fiac, realizado de 25 a 30 de outubro de 2016, em Salvador, e que nesse ano reforçou a urgência de tomar posições críticas diante da realidade. Uma edição que assumiu a política no seu sentido mais franco e humano, a micropolítica de todo dia comprometida com o coletivo, com aquilo que nos é comum, nas palavras de Felipe Assis, um dos coordenadores gerais do Festival, ao lado de Ricardo Libório.

Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Ricardo Libório e Felipe Assis, curadores do Fiac. Foto: Leonardo Pastor
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Provocação do Fiac. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

Como posicionar discurso e ação, quebrando regras para criar outros jogos e novos modos de (re)existir em tempos de crise?, como convocar a participação coletiva?, foram disparadores da nona edição do Fiac Bahia. A proposta é de engajamento direto, em detrimento a esquemas de representação. Uma convocação à presença; ou seja, um convite para “meter mão”, tanto no sentido figurado, quanto literal.

Em conversa com o Felipe Assis, ele ressaltou a importância dos trabalhos que se apresentam como resultado, mas também as atividades de formação. A quebra da hierarquia foi um procedimento para valorizar também o processo. “Porque os resultados podem servir a uma lógica de mercado de produto. Mas a gente sabe que é o tempo contínuo de elaboração que também se conecta o processo da prática artística. E que nos últimos tempos se tem valorizado o lugar do processo em detrimento muitas vezes do resultado”. Por isso que, para ele, uma atitude, uma postura política pode ser em alguns casos mais relevante que o resultado estético muito bem-acabado e facilmente comercializável.

Aplicação variada de prática artísticas na curadoria como risco, presença, múltiplas tradições, narrativas fragmentadas, participação estiveram na mira do festival. E em 2016 o Fiac deu relevo à participação como princípio ativo. Para isso contou com um grupo gestor e curador ampliado, composta por 16 mãos que construíram a identidade do festival – coordenações geral, administrativa, técnica, logística e de atividades formativas, além da assessoria jurídica e de comunicação. A equipe fez com que essas ideias pulsassem em todas as ações do festival, das questões políticas e da coletividade.

Ao longo de seis dias, a pergunta que norteou as ações do Fiac Bahia foi como reinventar a participação coletiva diante de tantas rupturas? As respostas vieram de várias formas, principalmente nas tentativas de fortalecer vínculos comuns, entre artistas, produtores, público, sociedade. Tarefa difícil, mas engendrada nas microrrelações de empoderamento.

O festival se tornou “uma rede que se retroalimenta e estabelece vínculos com outras iniciativas interessadas mais em perguntas do que em respostas”.  Muitas ações foram feitas a partir dessa decisão: de criação e intervenção visual e algumas oficinas, ampliação do Seminário Internacional de Curadoria e Mediação em Artes Cênicas.

As peças de divulgação reforçam a proposta de horizontalidade. O público e os participantes do Fiac Bahia foram convidados a personalizar cartazes e programas nos ateliês abertos de serigrafia, carimbo, estêncil e xilogravura montados no Pátio do Goethe-Institut. A confecção desse material incorpora produção industrial e artesanal e foi possível a partir da parceria da TANTO Criações Compartilhadas com a Sociedade DA Prensa. O festival incentivou a “meterem mão” nesse processo e customizar ao mesmo tempo que provoca reflexões sobre autoria, gesto artístico, ser artista e ser público.

Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Casa Preta. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor
Festa em Casa: Ocupação Coaty. Foto: Leonardo Pastor

O festival se espalhou por 12 espaços de Salvador. Com exceção do Teatro Castro Alves, com capacidade para mais de mil pessoas (mas que na realidade funcionou no palco para público mais concentrado), os outros espaços estão voltados para plateias de até 200 lugares, incentivando um convívio mais próximo da experiência cênica. Foram utilizados Teatro e Pátio do Goethe-Institut, e Teatro Vila Velha, Teatro Martim Gonçalves, Espaço Cultural Barroquinha, Teatro Martim Gonçalves, Teatro Experimental, Teatro Gregório de Mattos, Casarão Barabadá, Casa Preta, Coaty e Oliveiras.

Os sentidos de convivência, de se apropriar da cidade em seus casarões carregados de história, ganharam atitudes nos encontros noturnos do Fiac, com as “Festas em Casa”. Na rota de dialogar com os projetos de ocupação cultural de Salvador receberam artistas e público para contato mais próximo. Um impulso para essa reinvenção do coletivo, da possibilidade de compartilhamentos com instigação festiva. Bandas e Djs de vozes e ritmos variados animaram o Casarão Barabadá, Ocupação Coaty, Oliveiras, Casa Preta.

O exercício do pensamento crítico teve atuação da DocumentaCena, com a participação das casas Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda (PE)? e Horizonte da Cena (BH), e de outros profissionais como Antropositivo (SP), Agora (RS), Barril (BA) e Precisa-se Público (RJ).

A programação reuniu um leque de espetáculos posicionados de forma crítica frente às questões da contemporaneidade. Nessa 9ª edição, o Fiac quis sacudir o “espectador” para assumir um papel mais ativo, na cena ou fora dela. Chacoalhou.

Seguem comentários sobre outros espetáculos que assisti durante o festival:

O BOBO

Caio Rodrigo mistura Yorick, da peça Hamlet, e a figura do bobo de Rei Lear, ambas de William Shakespeare, para criar um personagem que dispara sua metralhadora giratória, contra tudo e todos. E ele está no meio. O espetáculo O Bobo, do Teatro Terceira Margem, se arvora a dizer verdades antes de um suicídio anunciado. O ator está em cena vestido apenas por uma cueca preta. A ironia que sai da sua boca e de seus gestos se esparrama pelo teatro e ele convoca trechos de obras de Albert Camus, Maquiavel, Caetano Veloso, fragmentos de ensaios filosóficos para reforçar sua munição acusatória.

O intérprete joga com as teorias teatrais e envereda em seu discurso pelas ruelas do ofício do ator, questionando filigranas e trocando de máscaras para defender seus pontos de vista.

Caio Rodrigo anuncia a si próprio como codiretor rejeitado duas vezes na pós-graduação, músico amador e maconheiro, figurinista que não teve trabalho, ator/criador meio frustrado e aspirante a professor da UFBA. Ficção com fundo de verdade?

Criação conjunta de Caio com o diretor teatral Daniel Guerra, O Bobo é bom de provocações metateatrais. Dividida em quadros, a peça circula por várias poéticas e questiona o conceito da presença e a relação entre artista e público. Algumas instigam, outras nem tanto, como a “para quem se faz teatro?”, que se torna uma questão sem grande ressonância diante de todo o esforço de criar um mosaico inteligente e desafiador de pensamento cênico performado. A trilha sonora de Juracy do Amor (Beef), explora texturas, riffs de guitarra ao vivo e potencializa o clima do programa.

ENDOGENIAS

O título Endogenias traduz o processo de valorização dos próprios intérpretes do Balé Teatro Castro Alves como criadores da companhia baiana de dança contemporânea. O espetáculo é formado por três coreografias distintas (Generxs, de Leandro de Oliveira; Youkali, de Konstanze Mello; e Dê Lírios, de Tutto Gomes), apresentadas com a plateia sentada no próprio palco da sala principal.

Imagens e contextos do cotidiano são inspiradores da coreografia Generxs que cria um ambiente de embate para discutir o gênero, a identidade de gênero, a sexualidade, a relação de poder entre masculino e feminino, o machismo. A obra de Leandro de Oliveira produz potentes movimentos e fluxos de imagens nas articulações das cenas sobre a criminalização e o preconceito; a tolerância relativa; e a celebração. Em determinado momento da peça coreográfica, pessoas do público recebem bolinhas e são incentivadas a jogar em um personagem que assume sua homossexualidade. Em seguida, outro bailarino, montado em uma sandália plataforma, pega o microfone e parte para discutir com a plateia sobre o procedimento, questiona a ação e faz um discurso contra o preconceito.

Tudo é permitido sem censura ou julgamentos em Youkali, da coreógrafa Konstanze Mello. É um quadro bem sensual. O bar dançante se transforma em lugar utópico onde os seres podem realizar seus desejos. Lá não existe conflito, discriminação, nem qualquer tipo de censura. A peça é livremente inspirada na obra Cabaré Youkali, do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), e do também alemão, o compositor Kurt Weill (1900-1950). Sugere uma caverna pós-moderna para onde se pode fugir da realidade opressiva e perversa.

Dê Lírios, de Tutto Gomes, trata das desilusões amorosas e chega ao palco com um sotaque nordestino e as influências norte-americanas e europeias. Carrega um tom nostálgico reforçado pela música Chorando e cantando de Geraldo Azevedo. A coreografia também faz referências indiretas ao Movimento Armorial lançado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-1914).

Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos, o silenciamento e a hipersexualização da mulher negra
Mônica Santana questiona a invisibilidade, os estereótipos e a hipersexualização da mulher negra. Foto: Leonardo Pastor

ISTO NÃO É UMA MULATA – SOLO PERFORMÁTICO

No teaser do espetáculo Isto não é uma mulata, a atriz Mônica Santana queima uma edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, entre outros livros e revistas. Ela defende o procedimento como ação política contra a lógica da democracia racial. Na peça, a atriz cita a famosa frase “branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”. É contra esse tipo de discurso que a intérprete levanta a performance, da invenção da mulher negra no Brasil.

Antes de começar a sessão, enquanto o público aguardava o chamado, uma moça circulava a limpar o chão. Achei estranho. Mas isso já fazia parte da performance, da demonstração de invisibilidade dos papeis subalternos.

O espetáculo se alinha com o processo de muitas mulheres negras e da própria atriz. Dos procedimentos que adotou para ser notada, para parecer branca. Do autoengano de que não é tão preta assim à consciência da beleza e forças negras, que não admite o exotismo, a animalização nem a hipersexualização.

A performance ironiza de forma potente a imagem da mulher negra nas artes e na mídia. Isto Não é Uma Mulata ataca clichês na representação da mulher negra. E é bastante contundente ao criticar os papeis redutores do trabalho doméstico, da sensualidade da passista carnavalesca e do corpo exuberante.

Como exercício de teatro político, a peça também cumpre a função de falar de afetividade e solidão, da feminilidade estilhaçada, de racismo. Enquanto prática política. Isto Não É Uma Mulata leva para o centro da discussão a invisibilidade, a visibilidade reduzida, os estereótipos, e o silenciamento. Num tom empoderado, agressivo até, de quem está pronta para o combate.

Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos
Antígona Recortada, do Grupo Bartolomeu de Depoimentos. Foto: Leonardo Pastor /Divulgação

ANTÍGONA RECORTADA: CANTOS QUE CONTAM SOBRE POUSOS PÁSSAROS

Os clássicos são assim: têm fôlego para aceitar demandas contemporâneas, para afinar urgências políticas e crescer em poéticas. Ocorre com Antígona recortada: cantos que contam sobre pousos pássaros, montagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que traz o mito grego de Antígona para os tempos atuais. A tragédia de Sófocles serve de base para mostrar meninas da periferia, que organizam uma ação contra o extermínio de seus irmãos pela ação do tráfico.

Já faz 13 anos que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos surgiu com o intuito de traçar fluxos entre a cultura hip-hop com o teatro épico. O grupo é formado por Claudia Schapira, Eugênio Lima, Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva.

No texto original de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o seu irmão Polinices com todas as honras fúnebres. Isso vai de encontro às ordens de Creonte (a figura do Estado), que decidiu que somente o outro filho de Édipo, Etéocles é merecedor de tais honras, pois foi morto em combate pela defesa Tebas, cuja sucessão do trono foi motivo da batalha entre os irmãos.

Antígona recortada pega do original grego a discussão do direito de as periferias sepultarem dignamente seus mortos exterminados pelo tráfico e com isso se insurge contra os chefes.

As atrizes-MCs Luaa Gabanini e Roberta Estrela D’Alva expressam com o corpo e a voz o trabalho de recolher os corpos dos meninos para promover o justo descanso. A palavra pronunciada ritmicamente (“spoken word”) pelas duas intérpretes é cercada, trancada e comentada nas batidas sintetizadas e misturadas pelo DJ Eugênio Lima, provocando uma potente experiência sensorial. E nessa mistura sonora entram diversos sons, falas – como as de Juscelino Kubitschek e Lula – e músicas de vários matizes, do MPB ao funk.

Com texto e direção de Claudia Schapira, a peça mira a violência exercida nas periferias e favelas, mas remete para as reivindicações de injustiças praticadas na ilegalidade ou ainda sob a capa da legalidade.

Artistas falam de um lugar que não existe mais
Artistas falam de um lugar que não existe mais. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Sanja Mitrović, junto à tela, e Vladimir Aleksić, deitado no chão. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

NÃO ME ENVERGONHO DO MEU PASSADO COMUNISTA

Sanja Mitrović (1978) e Vladimir Aleksić (1977) nasceram em Zrenjanin, na República Socialista Federativa da Iugoslávia, atual Sérvia. Ela trabalha atualmente entre Bruxelas e Amsterdã. Ele voltou à Sérvia para reconstruir sua vida. Amigos de infância, eles comungam da mesma memória de um país que não existe mais. A partir dessas lembranças pessoais, do passado socialista, do sentido de comunidade e da história do cinema iugoslavo, eles ergueram o espetáculo Não me envergonho do meu passado Comunista (I Am Not Ashamed of My Communist Past).

O sentimento de perda desses dois artistas é mostrado na peça numa mistura melancólica do auge ao colapso das empresas socialistas e o avanço do conservadorismo. Sanja e Vladimir traçam um diálogo entre cinema e teatro e utilizam uma série de estratégias – de comentários em áudio, sincronização simultânea para criar uma cena física e elucidar / embaralhar o que é fictício ao entrelaçar suas experiências de vida com as dos filmes, que formam um mosaico da história do território iugoslavo.

Partindo da autobiografia da dupla, a peça expõe as transformações geográficas e afetivas impostas pelas guerras, o pós-socialismo, o neoliberalismo. A devastação da cidade natal dos artistas, que era uma potência econômica, atingiu a vida pessoal de cada um deles. Com arquivos de filmes que refletem uma multiplicidade de posições políticas e culturais, eles projetam as contradições da sociedade em que viveram.

Os testemunhos reais estão repletos de humor e de crítica ao capitalismo desenfreado, dos perigos do nacionalismo, do racismo e do ódio, da iconografia da destruição do Leste Europeu, e as identidades europeias numa época de grandes migrações globais.

Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação
Ator Eduardo Okamoto. Foto: Leonardo Pastor / Divulgação

OE

Um poema para a cena que sintetiza 28 imagens oscilantes entre a tradução do sonho e memória, vivência e imaginação, palavras e silêncios. O espetáculo Oe tem essa pretensão grandiosa, apesar de sua aparência simples. Traz um corpo altamente emotivo em gestos e expressões, mesmo as mais suaves. Esse solo com dramaturgia inspirada na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe – vencedor do Nobel de Literatura de 1994, mais especificamente no livro Jovens de um novo tempo, despertai! trabalha com urgências e impossibilidades. Ao identificar a ameaça da morte, um homem escreve para o seu filho primogênito, que possui  deficiência intelectual, um livro contendo a definição de todas as coisas existentes no mundo.

O ator Eduardo Okamoto encara a vertigem terrível de um pai dividido entre amor e culpa em relação ao seu primogênito, um menino que sofre de uma deficiência intelectual congênita e se supõe eternamente dependente.

O diretor Marcio Aurelio utiliza poucos recursos: cenário reduzido a alguns objetos, uma movimentação desenhada e breves oscilações na voz. A dramaturgia de Cássio Pires ergue episódios que não seguem uma ordem lógica ou temporal.

O filho só desenvolveu a fala depois dos seis anos de idade, aprendendo com o som dos pássaros. O menino aprendeu a tocar piano e, hoje, é compositor respeitado no Japão e fora dele.

O espetáculo propõe um chamado para novas formas de cidadania, baseadas na responsabilidade intransferível de cada ser sobre suas ações: “[há uma] conexão existente entre a violência em escala mundial, representada por artefatos nucleares, e a violência existente no interior de um único ser humano”, escreve Kenzaburo Oe.

Para dar vida a tão profundo personagem, o ator Eduardo Okamoto realizou um estágio em 2014, no Kazuo Ohno Dance Studio, localizado no Japão, transportando sensações aos movimentos do corpo tirados do Butoh, dança japonesa criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.