Arquivo da tag: Gyl Giffony

Tubo de ensaio

Crítica da peça Metrópole, da Inquieta Cia. de Teatros

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2014

 

Formada por artistas egressos da graduação de Artes Cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a Inquieta Cia. de Teatros apresentou Metrópole na Sala de Ensaios do Centro Cultural São Paulo, no contexto da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. O espetáculo foi concebido para se apresentar em espaços com esse caráter e aproveita de modo interessante a parede coberta de espelhos, especialmente no que diz respeito ao poucos movimentos de luz, feitos apenas com uma lanterna e alguns desenhos no espelho. Os espectadores se vêem refletidos ao longo de toda a peça e podem observar-se ou observar os demais enquanto a cena se desenrola. Essa estratégia, que faz o espectador dar-se conta de si mesmo o tempo todo, encaixa a experiência em um lugar de expectativa moderada. Nos vemos inseridos em um contexto de experimentação, estamos todos na sala de ensaio, como se fôssemos cobaias-cúmplices.

No encontro de intercâmbio entre grupos, os integrantes se apresentaram como um grupo de origem acadêmica, que se encontrou na faculdade de teatro e começou a trabalhar a partir desse contexto. Não é um grupo iniciante, mas talvez seja o grupo mais jovem no contexto da Mostra. Isso aparece no espetáculo em alguns aspectos, como na lida com o trabalho do ponto de vista técnico e do ponto de vista temático.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Do ponto de vista técnico, parece que há uma ansiedade com o próprio fazer teatral que em alguns momentos acaba ficando na frente, aparecendo mais do que o trabalho em si. A intensidade que aflora nos corpos de Silvero Pereira e Gyl Giffony (que também assina a direção) em muitos momentos fica em primeiro plano. Isso pode ser uma opção estética, mas ficou a impressão de que os artistas poderiam regular a voltagem pra dar a ver mais nuances, mais delicadezas. O excesso de energia no trabalho atorial pode se confundir com uma limitação técnica. A fricção entre os dois personagens e a proximidade com os espectadores produz um calor interessante, mas o trabalho acaba contando demais com isso. É como se o vigor fosse mais de juventude que de elaboração poética.

Do ponto de vista temático, dos assuntos abordados e dos enfrentamentos da dramaturgia de Rafael Barbosa com o material reunido para a produção do texto, a peça esbarra nesse lugar da pesquisa incipiente. O entendimento do que é a opção pela vida na arte às vezes parece um pouco romântico, como se tudo fosse 8 ou 80. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra – poderíamos dizer. A persistência demanda concessões e recusas em uma justa medida. É possível construir um lugar de criação artística para si enquanto ainda se ganha o pão com outros meios. Nos debates realizados na Mostra, a viabilidade econômica da continuidade dos grupos, a necessidade de ter uma sede, uma regularidade, foram assuntos importantes. É interessante ver que o grupo colocou isso em jogo na própria criação. Nesse sentido, imagino que o espetáculo tenha uma empatia imediata com o público de jovens e jovens adultos, especialmente entre espectadores que lidam com esses questionamentos no seu dia a dia. E a empatia com o público jovem no teatro não deve ser subestimada.

A peça começa com um prólogo impactante, numa referência ao universo de Caio Fernando Abreu, cheio de fantasia e brilho. Depois, o acender das luzes revela a crueza da realidade. Essa discrepância entre um falso glamour das iludidas do prólogo e a realidade maçante do trabalho braçal do rapaz que desistiu da vida artística apresenta de maneira econômica uma ideia geral de uma imagem possível do lugar do artista: uma mistura de fantasia e realidade, de epifania e dureza.

Fica a curiosidade de conhecer outras peças do grupo, para enxergar o seu trabalho em um contexto mais amplo, e o desejo de ver o que os integrantes da Inquieta Cia. de Teatros estarão fazendo daqui a alguns anos.

Cheiro forte de vinho barato

Foto: Fernanda Pessoa
Foto: Fernanda Pessoa

Crítica do espetáculo Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

7 de agosto de 2014

Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, joga frestas de luz sobre o lugar da vocação na vida de cada um, e na sua esteira convoca para outras questões como sorte, perseverança, oportunidades. O espectro pode ser ampliado, mas no caso domar e projetar esse talento estão no âmbito das artes, mais especificamente do teatro numa cidade de pedra.

Num piscar de olhos, fui transportada ao longa-metragem Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, de 1979, e sua Caravana Rolidei. A uma cena específica em que o ator alagoano José Márcio Passos, na pele de um poeta que peleja para mostrar escritos a Lord Cigano (José Wilker). No filme, o poeta é preterido por um sanfoneiro arretado. Nos bastidores, José Márcio perdeu o papel do sanfoneiro Ciço, para o ator e cantor Fábio Júnior.

A lembrança me veio porque estão no âmago da discussão entre os dois irmãos da peça esses meandros do caminho artístico. Em algum momento, amargurado, Caetano (o mais velho) diz que foi o teatro que desistiu dele. Ele atendeu ao chamado, mas não foi suficiente para vencer os embates subjetivos e objetivos. Ensimesmou-se.

Caetano “abriu mão” do teatro para fabricar bolos, tortas e pães sob encomenda. Sem avisar, seu irmão Charles aparece para uma visita, ou melhor, para passar uma temporada e volta com esse assunto do teatro, com essa febre do teatro, com esse vírus do teatro. Quer contaminar novamente Caetano. Diz que escreveu uma peça para ele.

O texto é de um jovem dramaturgo carioca, radicado em Fortaleza, Rafael Barbosa. Apreendo influências de Caio Fernando Abreu em sua escritura. Há outras, lógico, mas Caio pulsa mais forte. Em cena estão os atores Silvero Pereira e Gyl Giffony, este segundo também diretor do espetáculo. Em termos de atuação, Silvero se destaca e talvez a atuação de Gyl merecesse um olhar de fora.

Já como diretor Gyl Giffony empreende voo mais alto para materializar essa relação ambígua de dois artistas com a cidade. Na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, Metrópole fez quatro sessões (duas terça e duas quarta), na Sala de Ensaio 1 do Centro Cultural São Paulo. Assisti à última.

Para chegar ao espaço da apresentação o público desce escadas percorre corredores, é um labirinto. O local escolhido está afinado com a proposta da encenação. Quando o público adentra, o ambiente está escuro. Uma luz tênue de lanterna ajuda a localizar os assentos.

Ainda na penumbra o ator Silvero Pereira começa a contar a história de um garoto que consultou a vidente Agnes e se “descobre” Audrey Hepburn, atriz belga de filmes como Bonequinha de luxo e A princesa e o plebeu. O personagem Caetano conta que os rapazes, os atores daquela cidade correram para saber da vidente quem foram, entre estrelas de cinema e cantoras famosas, em vidas passadas.

Nesses momentos Silvero Pereira canta lindamente numa louvação ao “monstro teatro”. A cena despojada avança.

Depois da revelação desse sonho despudorado, as luzes se acendem e aparece Charles. Um estranhamento inicial se instala e eles se enfrentam feito dois búfalos e aos poucos somos informados que eles são irmãos, com diferenças de posturas com relação ao teatro. Enquanto um desistiu, o outro persiste. Um se trancou no seu apartamento, o outro ainda busca enfrentar o mundo. Espaços abertos e fechados em duelo de metalinguagem.

O espetáculo oscila entre claros e escuros. A plateia está sentada defronte de espelhos. O público fica sentado em dois blocos e suas imagens também estão refletidas. Os intérpretes circulam entre esses blocos de gente, atuando na frente, atrás, e dos lados dos espectadores. Duas portas, de onde eles entram e saem, sinalizam que há saídas. Talvez uma aposta da dramaturgia e da direção de que a suposta falência da vocação não deve ser encarada como absoluta, mesmo com todos os danos e traumas.

Mas é um reflexo pertinente sobre o desalento do ofício de ator (e seus derivados) como proposta profissional que garanta dignidade para custear a sobrevivência. Urgente e latejante.

Os sujeitos às vezes se digladiam na cena, às vezes se permitem delicadezas. O ator batendo ovos em uma tigela cria uma sonoridade estridente que vai marcando a ação em alguns momentos. Os aspectos sujo, urbano e vivo são destacados nas ações com farinha, papel e vinho, no figurino de Charles e nos patins sobre os quais ele desliza.

Na sessão que assisti, numa cena com mais intensidade, o ator Gyl Giffony joga vinho nos espelhos, sem querer quebra um pedaço e se corta. A cena progride mais real, deixando no ar aquele cheiro forte de vinho barato.