Crítica do espetáculo Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)
IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo
7 de agosto de 2014
Metrópole, da Inquieta Companhia de Teatros, joga frestas de luz sobre o lugar da vocação na vida de cada um, e na sua esteira convoca para outras questões como sorte, perseverança, oportunidades. O espectro pode ser ampliado, mas no caso domar e projetar esse talento estão no âmbito das artes, mais especificamente do teatro numa cidade de pedra.
Num piscar de olhos, fui transportada ao longa-metragem Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, de 1979, e sua Caravana Rolidei. A uma cena específica em que o ator alagoano José Márcio Passos, na pele de um poeta que peleja para mostrar escritos a Lord Cigano (José Wilker). No filme, o poeta é preterido por um sanfoneiro arretado. Nos bastidores, José Márcio perdeu o papel do sanfoneiro Ciço, para o ator e cantor Fábio Júnior.
A lembrança me veio porque estão no âmago da discussão entre os dois irmãos da peça esses meandros do caminho artístico. Em algum momento, amargurado, Caetano (o mais velho) diz que foi o teatro que desistiu dele. Ele atendeu ao chamado, mas não foi suficiente para vencer os embates subjetivos e objetivos. Ensimesmou-se.
Caetano “abriu mão” do teatro para fabricar bolos, tortas e pães sob encomenda. Sem avisar, seu irmão Charles aparece para uma visita, ou melhor, para passar uma temporada e volta com esse assunto do teatro, com essa febre do teatro, com esse vírus do teatro. Quer contaminar novamente Caetano. Diz que escreveu uma peça para ele.
O texto é de um jovem dramaturgo carioca, radicado em Fortaleza, Rafael Barbosa. Apreendo influências de Caio Fernando Abreu em sua escritura. Há outras, lógico, mas Caio pulsa mais forte. Em cena estão os atores Silvero Pereira e Gyl Giffony, este segundo também diretor do espetáculo. Em termos de atuação, Silvero se destaca e talvez a atuação de Gyl merecesse um olhar de fora.
Já como diretor Gyl Giffony empreende voo mais alto para materializar essa relação ambígua de dois artistas com a cidade. Na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, Metrópole fez quatro sessões (duas terça e duas quarta), na Sala de Ensaio 1 do Centro Cultural São Paulo. Assisti à última.
Para chegar ao espaço da apresentação o público desce escadas percorre corredores, é um labirinto. O local escolhido está afinado com a proposta da encenação. Quando o público adentra, o ambiente está escuro. Uma luz tênue de lanterna ajuda a localizar os assentos.
Ainda na penumbra o ator Silvero Pereira começa a contar a história de um garoto que consultou a vidente Agnes e se “descobre” Audrey Hepburn, atriz belga de filmes como Bonequinha de luxo e A princesa e o plebeu. O personagem Caetano conta que os rapazes, os atores daquela cidade correram para saber da vidente quem foram, entre estrelas de cinema e cantoras famosas, em vidas passadas.
Nesses momentos Silvero Pereira canta lindamente numa louvação ao “monstro teatro”. A cena despojada avança.
Depois da revelação desse sonho despudorado, as luzes se acendem e aparece Charles. Um estranhamento inicial se instala e eles se enfrentam feito dois búfalos e aos poucos somos informados que eles são irmãos, com diferenças de posturas com relação ao teatro. Enquanto um desistiu, o outro persiste. Um se trancou no seu apartamento, o outro ainda busca enfrentar o mundo. Espaços abertos e fechados em duelo de metalinguagem.
O espetáculo oscila entre claros e escuros. A plateia está sentada defronte de espelhos. O público fica sentado em dois blocos e suas imagens também estão refletidas. Os intérpretes circulam entre esses blocos de gente, atuando na frente, atrás, e dos lados dos espectadores. Duas portas, de onde eles entram e saem, sinalizam que há saídas. Talvez uma aposta da dramaturgia e da direção de que a suposta falência da vocação não deve ser encarada como absoluta, mesmo com todos os danos e traumas.
Mas é um reflexo pertinente sobre o desalento do ofício de ator (e seus derivados) como proposta profissional que garanta dignidade para custear a sobrevivência. Urgente e latejante.
Os sujeitos às vezes se digladiam na cena, às vezes se permitem delicadezas. O ator batendo ovos em uma tigela cria uma sonoridade estridente que vai marcando a ação em alguns momentos. Os aspectos sujo, urbano e vivo são destacados nas ações com farinha, papel e vinho, no figurino de Charles e nos patins sobre os quais ele desliza.
Na sessão que assisti, numa cena com mais intensidade, o ator Gyl Giffony joga vinho nos espelhos, sem querer quebra um pedaço e se corta. A cena progride mais real, deixando no ar aquele cheiro forte de vinho barato.