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A carne da palavra numa intimidade desconcertante

 

Foto: Divulgação MITsp
Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Canção de muito longe, de Ivo van Hove, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

11 de março de 2015

O protagonista de Songs from Far Away (Canção de Muito Longe), Willem (Eelco Smits) escreve cartas numa tentativa desesperada de estabelecer uma relação com seu irmão morto. Essas missivas, sem o destinatário vivo, remetem para afetos extraviados, afeições profundas escondidas sob a velocidade do tempo e da distância autoimposta pelo personagem, que deixou para trás pessoas queridas. Nesse rito de passagem, ele inventa um território para resgatar a vida amorosa largada em Amsterdam, quando migrou para Nova York.

Única estreia mundial da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, Canção de Muito Longe é uma coprodução entre a MITsp e a Toneelgroep Amsterdam. A encenação do belga Ivo van Hove (com dramaturgia do inglês Simon Stephens) amplifica a intimidade de um jovem banqueiro no seu processo de luto. As canções de Mark Eitzel criam uma gama de sensações dessa perda irreversível.

O encenador provoca pequenas explosões. Algumas vezes, quase imperceptíveis. Outras chegam como convulsões no corpo do ator. E transborda de conceitos da cena, apagando fronteiras e surpreendendo. Um teatro da palavra, vinculado à performance.  O “extremo contemporâneo” nas palavras da pesquisadora Josette Féral.

Um teatro que desnorteia. Podem conviver a evocação da estrutura dramática de ilusão do real, com os confrontos e restrições do recurso mimético, e a ampliação das possibilidades da cena contemporânea. Carrega a “extrema manifestação de corporeidade” da qual fala Hans-Thies Lehmann, numa presentação, que envolve corpo, espaço e tempo, articulados magistralmente.

O processo de luto é delicado. O protagonista desce a regiões inimagináveis em que o nervo exposto é refletido em dor profunda, que vibra como um instrumento de corda e atinge os lugares de sensibilidade do espectador. Nesse processo de luto, ele passa por todas as fases, da revolta à aceitação.

 Na trajetória desse arco lança desejos e inquietações para um território inalcançável, o passado. Mas reelabora sua cartografia amorosa ao reinventar esse lugar. Sua presença pulsa e ocupa o palco em carga eletrizante.

Em princípio, Willem parece um robô de ganhar dinheiro. Mas se desfaz de seus gestos programados ao despir-se das vestes. Capa, casaco, blusa, calça. Desnudo, ele perscruta o humano. Seu corpo lateja ao percorrer um espaço da memória.

O texto se torna carne viva para atuar na produção de sentido. O corpo se torna o dispositivo cênico da própria fala, das canções, da ambiência. Ivo van Hove des-hierarquiza os componentes cênicos num processo perturbador.

A cenografia e a iluminação de Jan Versweyveld criam uma atmosfera de apartamento, quarto de hotel, com poucos elementos em cena. Assumem outras metáforas de espaços geográficos concretos e subjetivos. A janela faz o contato com o mundo externo, a neve, o frio, que influenciam no estado do personagem e da plateia.

Essa experiência sensível ecoou como uma dificuldade de controle da dor íntima. Uma vertigem a que somos submetidos em algum momento da peça, a partir de efeitos de luz e som. Parece reforçar uma das falas do personagem quando diz que todos nascemos, todos morremos e não vale a pena comentar. Mas a exposição da intimidade grita em sentido contrário.

UMA FACETA COMEDIDA DO CONTEMPORÂNEO

Crítica a partir do espetáculo “Canção de Muito Longe”, por Soraya Belusi (DocumentaCena/Horizonte da Cena)

As características que marcam a trajetória de Ivan Van Hove – ressaltadas pela pesquisadora Josette Féral na palestra realizada na MITsp, na qual empregou a expressão “extremo contemporâneo”, emprestada do poeta Michel Deguy, para designar o caráter performativo das criações de Van Hove – estão lá, presentes em todos os componentes da cena: na construção do espaço, na dimensão não descritiva do texto, na presença da música em uma relação que ultrapassa a ilustração, e na relação do ator com todos esses elementos. Porém, em vez de saltarem aos olhos do espectador, de se afirmarem de forma impositiva e evidente, esses traços da escritura cênica do encenador belga se apresentam em “Canção de Muito Longe” em sua faceta comedida, como se o artista, nesta obra, (re)experimentasse suas próprias marcas em doses moderadas.

O espetáculo, que fez sua estreia na MITsp, apresenta-se como uma narrativa sobre a perda e o luto. Willem estava um dia em Nova York, quando recebe um telefonema de sua mãe. A morte de seu irmão Pauli faz com que o jovem banqueiro retorne à cidade natal. Como forma de retomar o contato com o irmão – ou talvez consigo mesmo -, Willem lê as cartas que escreveu para ele.

Autodefinido como “um diretor de texto”, o encontro de Van Hove com Simon Stephens, dois criadores referenciais da cena contemporânea mundial – o primeiro considerado um dos encenadores mais criativos em atividade, e o segundo, um dos principais nomes da dramaturgia inglesa atual – comprova tal qualidade que o diretor se atribui, talvez a que fique mais evidenciada para o espectador em “Canção de Muito Longe”. A dramaturgia de Stephens permite que Van Hove trabalhe cada momento com esmero, escavando os potenciais sentidos e formas de cada palavra, preenchendo seus significados com contradições, estados em oposição.

Van Hove e o texto de Stephens promovem um incessante cruzamento espaço-temporal. Ao mesmo tempo que o texto evidencia a impossibilidade de se voltar ao passado, de recuperar os sentimentos um dia vividos ou viver aquilo que não se concretizou, a encenação reforça esses atravessamentos, conduzindo o público a uma jornada, interior e exterior, “sem sair do lugar” – concretizando o que a teórica Erika Fischer-Litche nomeia de “desvio performativo” do teatro contemporâneo, em que o entendimento cede espaço à experiência ou à “travessia do evento proposto”. (FISCHER-LICHTE, 2007, p 36).

“Por um momento, parecia que tudo acontecia no presente”, diz um trecho do texto. Van Hove parece reforçar essa sensação, embaralhar a noção do espectador de espaço-tempo definidos, forçando-o a adaptar rapidamente sua percepção de acordo com as sugestões que se apresentam diante dele. Não sabemos se o personagem chega a seu apartamento em Nova York, ou se está no hotel em que se hospedou em Amsterdã, ou se visita o antigo quarto do irmão na casa de seus pais.

Eelco Smits, ator que dá vida a Willem, performa de modo a presentificar a narrativa do passado, como se, ao ler as cartas, pudesse (ou quisesse) reviver aquilo que narra. A atuação assume um tom aparentemente realista, mas configura-se sutilmente performativa, à medida que o ator, mais que interpretar o texto, parece pretender jogar com ele, lançá-lo a diferentes paisagens sonoras, brincar com os sentidos e provocar contradições, correr com as palavras ou torná-las música.  Além disso, não parece ser a psicologia do personagem, mas os diferentes estados corporais e jogos rítmicos a reger a leitura dessas cartas, sugerindo momentos de nostalgia, raiva, culpa, arrependimento, entre outros.

Ao ator cabe ainda uma coreografia de diálogo com o espaço-luz proposto por Van Hove e seu parceiro Jan Versweyveld, uma linda composição no espaço, como numa pintura que tem o ator como elemento figurativista em meio ao abstracionismo das formas geométricas.

O espaço assume uma dimensão inacabada, quase completamente vazio, com uma neutralidade praticamente asséptica, em que o procedimento de fusão entre o interior e o exterior se faz novamente presente em uma de suas criações. Indefinido, mas sugestivo, o espaço revela-se vazado para o “fora” do “real”, sem criar nenhuma barreira para o público, como se o palco atingisse e integrasse a plateia ao espaço, num enquadramento quase cinematográfico, e para o externo na “ficção”, com duas grandes janelas que conectam o dentro e o fora do suposto apartamento.

Há um tensionamento-dubiedade-coexistência na assinatura artística de Van Hove – entre o clássico e o contemporâneo, o texto e a cena, o realismo e o performativo – que se manifesta em pequenas doses nesta mais recente criação. Neste primeiro contato com o público brasileiro de “Canção de Muito Longe”, Van Hove apresenta suas credenciais artísticas de modo a ainda guardar segredos e surpresas para um próximo encontro.