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Entre projeto e realização

Crítica de Projeto 85 – A dívida em três episódios, espetáculo idealizado pelos grupos [pH2]: estado de teatro,  La Maldita Vanidad, e Lagartijas Tiradas al Sol.

II Bienal de Teatro da USP

Projeto 85 – A dívida em três episódios é o resultado do projeto idealizado pelo grupo [pH2]: estado de teatro, de São Paulo, com a companhia La Maldita Vanidad, da Colômbia, e o Lagartijas Tiradas al Sol, do México. O espetáculo apresentado no Tusp, por ocasião da II Bienal de Teatro da USP, se divide em três partes: um filme e duas peças. O projeto é muito interessante, a apresentação do espetáculo no catálogo da Bienal cria grandes expectativas – para o bem e para o mal. Movidos por uma questão geracional, “o que fazíamos em 1985?”, os grupos deram início a esse projeto que também pretende colocar em jogo o ponto de vista de jovens criadores da América Latina, aproximando os três países com grupos cujos integrantes nasceram nos anos 1980.

Por um lado, sabemos que há um desejo por parte dos artistas de realizar um trabalho significativo, comprometido, que demanda pesquisa, reflexão e esforço de realização. Por outro lado, ficamos esperando que o trabalho resultante dê conta das expectativas que suscita, o que só acontece em parte. É preciso um tempo de adequação dessas expectativas ao que efetivamente se dá cena.

O primeiro episódio é um filme, O rosto da mulher endividada, cuja ficha técnica apresenta apenas nomes do grupo paulista. Tendo visto outro trabalho do grupo no dia anterior à apresentação de Projeto 85, identifiquei no filme o gosto pela opacidade que aparece emStereo Franz. Partindo da abertura do processo democrático no Brasil, o filme começa com imagens jornalísticas do povo nas ruas na eleição de Tancredo Neves, em resolução de VHS, o que dá o tom da visualidade das imagens que se seguem, como dos rostos das mães dos artistas do grupo em fotos de documento, cópias de passaporte, bem como dos vídeos gravados.

O segundo episódio, Endividamento privado, criação do grupo brasileiro com o grupo La Maldita Vanidad, é uma peça em que reconhecemos elementos do drama, com a apresentação de uma narrativa com diálogos e personagens. Enquanto a erupção de um vulcão ameaça a vida de todos, três irmãos discutem exaustivamente o destino da casa do pai, sem conseguir aceitar que o legado deixado para eles é feito apenas de dívidas – financeiras e emocionais. A narrativa começa de um modo mais ou menos realista, com os atores do grupo colombiano, mas logo se parte, quando os atores do [pH2] entram fazendo duplos daqueles personagens e as cenas começam a se repetir numa estrutura darmatúrgica espiralada. A relação com o espectador muda quando entra Fernando Arroyave, que faz o papel de um bombeiro que tenta fazer com que a família deixe a casa para salvar suas vidas. Suas falas também são endereçadas a nós, espectadores, embora não haja expectativa de reação concreta da nossa parte. A quebra, feita com delicadeza, sem alarde, anuncia a crescente desconstrução. Em alguns momentos, as atrizes que fazem a filha/enfermeira também olham na direção da plateia, mas isso acontece apenas como uma marcação de movimento, sem estabelecer um contato visual.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Tendo visto outras peças do grupo de Bogotá este ano na MITsp e, como disse antes, a do [pH2] na programação da Bienal, é possível perceber que houve uma tentativa de somar as caracteríticas de ambos. A companhia La Maldita Vanidad entra construindo uma narrativa, conferindo identidade aos personagens, e o [ph2] entra para desconstruir o aparente realismo. As soluções dramatúrgicas são interessantes e o elenco colombiano consegue estruturar as atuações da construção à problematização. Mas o acontecimento fica prejudicado pelas atuações dos integrantes do grupo paulista, que parece não se encaixar bem naquele contexto. As imagens de arquivo da erupção do vulcão em Armero em novembro em 1985, que encerram o episódio através da TV que faz parte do cenário, implodem o impasse familiar com uma catástrofe natural inexorável. A dramaturgia, ponto forte da cena, fica um pouco ofuscada pela falta de uma mão firme da direção com relação ao trabalho dos atores. É possivel identificar o projeto da encenação, a proposta artística por trás da cena, mas a cena em si ainda precisa de trabalho para acontecer com a potência que promete.

Já a terceira parte, Endividamento público, é uma peça com traços épicos e documentais, com recursos de audiovisual, criada pela companhia paulista e pelo Lagartijas Tiradas al Sol. A dramaturgia tece uma relação entre fatos históricos do México e do Brasil, tomando como acontecimentos-chave o terremoto de 1985, as Olimpíadas da Cidade do México em 1968 e a que vai acontecer no Rio de Janeiro em 2016. A combinação de textos e imagens parece mais elaborada no começo da peça. A produção visual dos destroços do terremoto é ótima, mesmo sendo um pouco cansativa. O problema é que depois a peça se esvazia. O final deixa ver certa ingenuidade, que geralmente aparece quando se quer falar do momento político presente em tom de denúncia. A falta de distanciamento crítico e o pathos com que o material é trabalhado acabam boicotando um pouco o rigor de elaboração poética.

O espetáculo fica prejudicado com a falta de uma dedicação sobre as atuações, por conta de limitações técnicas básicas como a atitude do corpo, a elaboração da emissão vocal, a articulação de sentidos na forma da fala de alguns atores e atrizes. As ideias aparecem mais no plano intelectual. As intensidades aparecem do pensamento para a fala – mas é uma fala sem tônus, muitas vezes trabalhada só no volume – com exceções, naturalmente. Gabino Rodriguez e Maria Adelaida Palacio, por exemplo, atuam com o corpo inteiro, integrado ao pensamento e à proposta estética de cada trabalho.

A abordagem da história pela ideia da dívida é bem pertinente à reflexão que essa geração – assim como a minha, dos nascidos nos anos 1970 – faz sobre os acontecimentos políticos e econômicos das últimas décadas na América Latina. Sentimos as perdas em setores muito básicos das nossas vidas, como o acesso à educação e o pensamento mesmo que rege as escolhas políticas feitas de cima para baixo nesse setor. Vem à mente a ideia de dívida no sentido amplo, como da dívida com os mortos – do vulcão na Colômbia, do terremoto no México, ou da construção de Brasília, realizada sobre os cadáveres dos operários mortos em acidentes de trabalho que nunca foram retirados e nomeados, e que não constam na falsa história gloriosa de ordem e progresso sem amor. A dívida com a condição opressora sobre o gênero feminino, com as narrativas dos anônimos, com a necessidade de fazer uma história a contrapelo, aparecem nesse importante projeto artístico.

A dívida como horizonte, herança e história

Foto: Ana Laura Leardini
Foto: Ana Laura Leardini

Crítica a partir do espetáculo O que fazíamos em 1985?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado O Retrato da Mulher Endividada, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, O Retrato do Homem Endividado, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada O Retrato do País Endividado, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.

É preciso estar atento e forte

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo El Rumor del Incendio, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo El Rumor do Incêndio, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, El Rumor del Incêndio problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em El Rumor do Incêndio. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos Monserrat e Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, El Rumor do Incêndio nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.

Teatro historiográfico do presente

Crítica da peça O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol

A primeira coisa que me chama a atenção em O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que se apresenta neste novembro de 2015 na II Bienal de Teatro da USP, é a ideia de um projeto artístico. Pode parecer uma coisa óbvia, que todo espetáculo teatral é um projeto artístico, mas não é bem assim. E quando falo em projeto artístico nesse caso específico não me refiro a um projeto de investigação formal, de pesquisa de linguagem, das poéticas do teatro, suas especificidades ou as possibilidades de criação interdisciplinar (que não deixa de ser uma especificidade do teatro). Me refiro a uma motivação que não se restringe às formas – embora não as deixe de lado. Não se trata simplesmente de entender o trabalho como uma espécie de teatro político, categoria carregada de diversos preconceitos e formas envelhecidas. Embora o conteúdo seja declaradamente político no sentido mais imediato da palavra (aquele que diz respeito a golpes, partidos, revoluções, guerrilhas, eleições, etc) e as formas do teatro documentário sejam características de um teatro político, me parece que O rumor do incêndio demanda um outro olhar, que ainda não sabemos qual é. O que é o teatro político do nosso tempo?

Movidos pelo pensamento crítico sobre o seu passado histórico, o questionamento, dirigido a si, sobre o presente que parece inerte e acreditando em perspectivas interessantes para o futuro, ou seja, sem idealizações, culpas, nostalgias e, principalmente, sem niilismo, o grupo criou uma peça que narra, com diferentes pontos de vista, um recorte da história do México: os anos 1960 e 1970.

O projeto artístico de que falo é um projeto que inclui o fazer teatral e o estar no mundo – ou melhor, o fazer teatral como um estar no mundo, consciente da sua historicidade. O fato mesmo de que a peça é uma espécie de teatro historiográfico nos faz pensar sobre as formas da história, não apenas sobre as suas narrativas – debate comumente restrito aos historiadores e teóricos da disciplina. Pensando em O rumor do incêndio, bem como em Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, outra peça do mesmo grupo sobre a qual tive oportunidade de escrever em outra ocasião, e espetáculos bem diferentes como Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen, Mi vida después, de Lola Arias, Guerrilheiras, projeto da atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha e Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, de Joana Craveiro, de Portugal, tenho o palpite de que o teatro documentário contemporâneo está a fim de repensar a escrita da história. E não me parece forçado dizer que há um protagonismo feminino nessas iniciativas. A história oficial, especialmente a história política, a que mais chega ao senso comum, é uma história escrita por homens sobre homens em um mundo dos homens. Até agora.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O rumor do incêndio coloca duas narrativas em paralelo. Uma delas é a história dos acontecimentos tidos como mais importantes, como os atos das instâncias de governo, as batalhas da luta armada, os números, as datas e as narrativas que podem ser comprovadas com documentos, matérias em jornais e fotos oficias. Esse tipo de narrativa histórica é sempre tomada como fiel à realidade – mesmo que saibamos que a história oficial dos países da América Latina é feita de mentiras, ocultamentos, adulterações. A peça apresenta essas narrativas em diversos momentos a partir de maquetes e soldados de brinquedo, posicionados em uma bancada comprida e filmados ao vivo pelos atores, enquanto as imagens geradas são projetadas em um telão. As imagens de guerra que conhecemos são imagens cinematográficas, extremamente espetacularizadas, ou televisivas, com os enquadramentos dados pelas regras do jornalismo midiático, que seleciona o que podemos e o que não podemos ver e como as imagens devem ser vistas. A peça faz um paralelo entre esses mecanismos e uma ideia comum de historiografia, linear, plana e sem lacunas como a bancada usada como suporte para as encenações com as maquetes.

A outra é da ordem da micro-história e de natureza biográfica: a história de Margarita Urías Hermosillo, guerrilheira que passou alguns anos na prisão e, depois disso, dedicou-se a outros fazeres: a antropologia, os amores, os filhos. As imagens que comprovam a sua existência não são apenas seus documentos, mas fotos cotidianas, além de relatos de quem a conheceu e conviveu com ela. O modo de apresentação da sua história não é como aquela narrativa filmada na bancada linear. Sua história é dramatizada. Os atores Francisco Barreiro e Gabino Rodríguez e a atriz Luisa Pardo encenam momentos da sua vida. Luisa também faz a personagem Margarita falando na primeira pessoa. Vemos então a dimensão de liberdade criativa possível para narrar a vida de uma pessoa real, que não é um personagem histórico, no sentido da história política oficial. Margarita seria uma anônima da história do México. O elemento cenográfico mais usado nessa dramatização da vida de Margarita é uma mesa, que dá a dimensão de uma história vivida em casa. Soma-se a isso o recurso de fazer a personagem falar na primeira pessoa, o que dá uma dimensão humana e ressalta o quanto o processo de ficcionalização é intrínseco à escrita da história, mesmo quando não é evidente.

A cenografia é bem determinante. Todo os elementos usados na cena estão dispostos no cenário. Tudo é, por assim dizer, útil. Mas há também uma artificialidade declarada, evidente no piso de grama sintética e nas plantas artificiais penduradas ao fundo do palco. É como se a cenografia quisesse evidenciar a artificialidade mesma de falar da luta armada no campo de décadas atrás, desde um ponto de vista urbano contemporâneo.

De modo geral, costumamos pensar o drama como forma de discutir os problemas do núcleo familiar, de ordem ética e moral, e o teatro épico como meio de propor questões coletivas, de ordem política. A peça do Lagartijas nos apresenta um épico que também é familiar, bem como uma história familiar que também é política, o que fica ainda mais claro para o espectador nos últimos minutos do espetáculo. A ideia de conferir humanidade à narrativa histórica pode ser um meio de torná-la mais próxima, para podermos olhar para o passado como algo que realmente faz parte do presente – o que todos sabemos, mas às vezes nos esquecemos.

A pergunta central do projeto como um todo é anterior às questões da cena e as ultrapassa, mas é o que finca o espetáculo no chão do presente. Se as gerações que nos sucedem quiserem falar de nós, do que fizemos quando jovens, elas falariam de quê? A pergunta nos interpela, nos chama para a conversa e nos coloca em cheque, mas o faz sem aquela empáfia de teatro político velho em que os artistas acham que têm que despertar os espectadores do seu sono de alienação. Em O rumor do incêndio, estamos todos no mesmo lugar, em uma conversa entre iguais. Nenhum de nós sabe o que deve fazer pelo futuro, nem o que deveria estar fazendo no presente. Mas a peça nos convida a abordar o problema por outros ângulos, fazendo do teatro épico, político, documental e historiográfico um lugar de pensamento com afeto.