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PERCEPÇÕES EM DESLOCAMENTO

Crítica de “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

Deslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamentos dominantes. Imperativos que se apresentam, independentemente da abordagem crítica, na fruição de De repente fica tudo preto de gente. São noções que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de percepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.

Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra – algumas delas apresentadas em conversas com professores-pesquisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disciplinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio quanto na pura contemplação.

Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita.

Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público estabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.

Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo de movimentos, assim como o dos performers, também assume uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar do espetáculo.  Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador. Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é, em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.

Assim como o deslocamento da percepção do espectador (sobre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir, ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os desobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra, espectador e espectador, espectador e performers que De repente tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.

No caso desse espetáculo, o público não está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performers. A obra se estabelece como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador, uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades, não determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.

 

O campo ampliado das artes cênicas

Crítica do espetáculo De repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin

MITsp 2014

 

A presença da obra de Marcelo Evelin, De repente fica tudo preto de gente, na programação da MITsp, que é uma mostra de teatro, é uma questão interessante para se pensar. Os campos do teatro e da dança nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha. Diante do compromisso de escrever sobre um espetáculo de dança – e especialmente tratando-se de uma obra com o nível de complexidade da que está em questão – me vejo diante de um problema para a crítica: o paradigma das categorias como campos separados de experiência e saber. O fato de a minha formação ser em teoria do teatro, sem estudos específicos na área de dança, é algo que à primeira vista me constrange o pensamento. Mas, afinal, o que é dança? E o que é teatro?

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é uma questão para a crítica de teatro. O teatro contemporâneo e a dança contemporânea não se definem hoje por aquilo que os definia algumas (muitas?) décadas atrás, como por exemplo, no caso da dança, a coreografia, no caso do teatro, o drama; embora o discurso comum não tenha assimilado de fato essa virada de liberdade criativa. Ainda vemos críticos escrevendo que algo “não é teatro” com uma convicção constrangedora. Não é a coreografia que define a dança, nem o drama que define o teatro – e as noções mesmas de coreografia e de drama podem ser bem mais amplas do que costumamos pensar. Não é o caso de tirar de cena a coreografia, nem de superar o drama.

Em uma reflexão apressada (uma contradição em termos) me parece que a fundamentação conceitual do espetáculo De repente fica tudo preto de gente em um princípio da física, ou seja, a presença forte de uma ideia orientadora que não está restrita à categoria dança, é algo que amplia o campo, que liberta a criação da repetição de um mero exercício do fazer, de uma variação sobre procedimentos dados. É nesse sentido que me parece que o espetáculo em questão é para qualquer um, porque ele não demanda nenhum conhecimento prévio do espectador, ele simplesmente se dá à experiência. Penso que o contemporâneo não está em um conjunto de premissas estéticas e reflexões endógenas, mas na natureza da relação com o espectador.

Com isso em mente, levanto o olhar para o contexto da MITsp para pensar o lugar deste trabalho no contato com outros assistidos até agora – até porque a ideia de contato e a subsequente contaminação entre corpos é algo que o espetáculo de Marcelo Evelin nos faz viver. O espectador é fisgado para dentro das obras em três instâncias diversas em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, Bem-vindo a casa e De repente fica tudo preto de gente. No primeiro, a relação é subjetiva, impalpável e demanda uma disponibilidade de espírito do espectador. No segundo, o público é convidado a fazer parte da situação ficcional que se estabelece. No terceiro, o espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Mas o preto das imagens criadas por Marcelo Evelin não é opaco. É um preto translúcido que convida o olhar para a beleza do escuro. Na prática da crítica, esse é o grande desafio: mais que discorrer sobre o que já se sabe, trabalhar a musculatura do olhar para enfrentar a escuridão. E o pensamento, como os olhos no escuro, precisa de tempo para começar a discernir as imagens nas sombras.