Arquivo da tag: Maria Thais

Nós, os curiosos

Crítica da peça Recusa, da Cia Teatro Balagan

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda.  O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que –  mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

Recusa é um ato politico

Foto: Fernanda Pessoa
Foto: Fernanda Pessoa

Crítica do espetáculo Recusa, da Cia Teatro Balagan, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

5 de agosto de 2014

Recusa é mais que um espetáculo. É um projeto portentoso de investigação de identidades, da Cia Teatro Balagan, com direção de Maria Thaís, à partir de pesquisa sobre ameríndios. O resultado amplo escapa aos sentidos numa primeira mirada. Pode provocar estranhamento pela profusão de referências de discursos que foram canibalizados durante o processo de construção da cena. Discursos jornalístico, antropológico, geopolítico e mítico. Mas aqui a lógica é outra.

Foram mais de três anos e meio de pesquisa, inclusive com incursão à Terra Indígena Sete de Setembro, dos integrantes da Aldeia Gãpgir, do povo Paiter Suruí, em Rondônia. Isso criou um caleidoscópio de pontos de vista que exige do espectador uma entrega maior para acompanhar a narrativa.

A direção musical de Marlui Miranda sustenta, embala e projeta as múltiplas vozes em tensão da “multidão” que ocupa o palco: dos dois índios Piripkura; dois heróis ameríndios, Pud e Pudleré, e todos os outros que eles inventam (humanos, animais, espíritos e coisas), metamorfoseando, em padre, onça fazendeiro, cantora e mais.

E também são convocados traços de personagens de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa. E haja fôlego dos atuadores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto.

Para dar conta dessa pluralidade, a Cia Balagan trabalha o teatro a partir de outros paradigmas (que eles foram caçando e devorando), numa reinvenção da linguagem cênica. A identidade é vista de forma plural. A recusa das figuras inspiradoras da peça – de se submeter a um processo civilizatório – é um ato político.

No Dossiê do espetáculo, publicado na revista Sala Preta, em junho do ano passado, os atores explicam que Recusa está ancorada, fundamentalmente, em duas bases conceituais: “perspectivismo ameríndio (canibalizado – e, ao nosso modo, reinventado como cena – do pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) e duplicidade (autonomia, e interação de diferenças devoradas nos trabalhos de Beatriz Perrone-Moisés e Manuela Carneiro da Cunha)”.

E detalham: “O primeiro conceito provocou-nos com a impossibilidade do sujeito apreender a realidade em sua totalidade, restando-lhe apenas uma parcela dela ou uma perspectiva sobre ela. O outro lembra-nos que, diversamente do pensamento euro-ocidental, fundado na busca permanente por uma unidade (lógica, coerente em si mesma e, não raro, excludente porque desqualifica tudo o que a ela não se assemelha), o pensamento ameríndio alicerça-se na busca por duplicidade, multiplicidade”.

O espetáculo é narrado e cantado em português e línguas ameríndias ou criadas pelos atores. A fisicalidade dos intérpretes foi forjada na preparação corporal de Ana Chiesa Yokoyama, que inclui os ensinamentos do Butô, o que dá uma leveza aos corpos e como eles atentam “uma nova perspectiva de tempo: não linear, não organizada em termos cronológicos, mas cíclica”.

Recusa desestrutura qualquer ideia preconcebida sobre os ameríndios, rejeita os estereótipos e revela com exuberância traços da riqueza dessas culturas ocultadas por discursos / posições dominantes.

O que dizer sobre a atuação dos dois atores? Aqueles seres que quase voam em cena, que nos encantam com suas vozes, que mergulham num jogo cênico de forma plena e provocam um tsunami na cabeça do espectador (pelo menos, foi assim comigo). A cenografia e figurinos de Márcio Medina, iluminação de Davi de Brito comungam na expressão dessa corajosa experiência artística e de vida.