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Humanidade abortada pelo poder

Foto: Divulgação MITsp

Crítica do espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2015

13 de março de 2015

Os altos níveis de violência, o tráfico de drogas, as desigualdades sociais, a guerrilha e a crise que enfraquecem a Colômbia estão ficcionados no espetáculo Matando o Tempo, Primero Ato Inevitável: Nascer, do autor e diretor Jorge Hugo Marín e da companha colombiana La Maldita Vanidad. O quadro explosivo não é explícito. E não há imagens de guerrilheiros e assassinatos. O contexto é deslocado para a sala de jantar de uma família de classe alta, um microcosmo das vísceras do aparelhamento de controle e opressão. O diretor trabalha no hiato de um hiper-realismo em que onze personagens se digladiam, oprimem, competem e são humilhados durante um almoço familiar de domingo. O embate entre essas pessoas em situações extremas esquadrinha a degradação humana e revela um equilíbrio sempre por um triz. Aí está uma chave para uma das leituras da peça, seja na encenação ou no desempenho dos atores.

Algo parece prestes a desmoronar a qualquer momento. As personagens riem muito, em suas gargalhadas falsas (ou forçadas), enquanto exercem pequenos poderes umas sobre as outras. Apesar de se tratar de uma família matriarcal, as mulheres da cena são oprimidas, ora pelos homens, ora pelas outras mulheres, as mais fortes.

Uma mulher grávida, cujo bebê poderia mudar o destino da família, pode ser condenada a perder seu herdeiro. Um jovem que foi estudar em Cambridge, mas ainda é ameaçado pelo pai de apanhar de cinturão, é apontado como o novo líder. E vai ganhar o seu cavalo. Mas sua subida ao trono requer o massacre de uma vila de pobres enfurecidos.

A companhia ocupa espaços não convencionais em suas montagens e, na 2ª edição da MITsp, a apresentação ocorre em uma das salas da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro. Com escadas de um lado e do outro e o salão à frente do público, a cena se desenvolve enquanto a família bebe. Como afirmavam os antigos romanos: “in vino veritas” (“no vinho está a verdade”), e as personagens soltam a língua e deixam cair a frágil máscara de hipocrisia, revelando ressentimentos, invejas e expondo o intricado nó de mentiras.

As figuras trocam ideias de coisas sem importância, valorizando lugares como Cambridge, Inglaterra e a sua realeza. Matam o tempo em aparentes banalidades, a beber e exercer a opressão sobre a empregada Margarita, nome mais gritado dos primeiros minutos da peça.

As criaturas subalternas da cena são confrontadas e humilhadas, expondo o lugar de derrotadas. Desse núcleo, Margarita, é a complexa. Ela é solicitada o tempo inteiro a servir a todos que, do alto das suas arrogâncias, empurram-na para baixo. Ela, em alguns momentos, pode até pensar que faz parte da família ao abraçar o menino ou bater palmas para o tio cantante. É lembrada sempre de que não. Seus passinhos curtos e ligeiros, sua carinha de quem guarda segredos que ouve “sem querer” dão a dimensão dessa natureza. A família não tem para com ela nenhum tipo de humanidade. Margarita está em sintonia com os outros pobres da Colômbia, subtraídos na potência de riqueza do país, com as ações de corrupção realizadas pelos donos da casa.

A mulher deslocada tenta fazer parte da roda dos seus chefes. Nessa postura, tenta seduzir ora um, ora outro. Um terceiro personagem desse grupo exerce uma função colaborativa – o capacho –, é um agente da corrupção, que viabiliza a compra de terras ilegais. Ele funciona em outro registo, o falso vencedor. Naquela casa, que fica a meia quadra do palácio presidencial, eles fazem suas falcatruas praticamente debaixo do nariz do governo. Essa informação geográfica está repleta de significados.

A tensão explorada na cena deixa escapar as fissuras da criação enquanto obra. Na linha tênue de falar sobre abusos de poder, a peça parece incorporar em alguns momentos esse mesmo lugar. Como se a introjeção de uma realidade fosse carregada também dos próprios preconceitos a que, a princípio, parece combater. Isso transborda nos diálogos que, na minha escuta, não conseguiram abrir caminhos para uma análise em um nível mais libertário daquele quadro. Os ecos de Ricardo III, de William Shakespeare surgem aqui e ali, mas sem grande potência.

Os julgamentos e falas das personagens dão margem para uma justaposição da conformação política da própria obra nas suas brechas e isso gera um incômodo de desesperança. Ao tratar de assuntos privados como extensão do público, o combate à corrupção e aos males da Colômbia, a peça não incorpora uma força libertária na sua poética, nem na sua dramaturgia, nem na cena.