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PERCEPÇÕES EM DESLOCAMENTO

Crítica de “De Repente Fica Tudo Preto de Gente”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

Deslocar-se. Instaurar novos espaços. Desarticular as categorias. Fazer mover os corpos. Mudar de lugar o olhar. Contaminar o outro. Desviar os comportamentos dominantes. Imperativos que se apresentam, independentemente da abordagem crítica, na fruição de De repente fica tudo preto de gente. São noções que parecem ser inerentes à obra de Marcelo Evelin e dos performers da Demolition Inc., e que provocam, entre outras coisas, a desestabilização do espectador, em sua maneira de percepção e de disponibilidade corpórea, e a própria relativização das categorias artísticas, por seu caráter híbrido e pela prioridade em estabelecer a experiência e a amplitude de sentidos.

Além das múltiplas leituras possíveis na relação com a obra – algumas delas apresentadas em conversas com professores-pesquisadores e estudiosos de outras áreas do conhecimento; neste caso, com Nina Caetano e Pedro Cesarino, respectivamente; que ofereceram chaves de aproximação através da investigação dos conceitos e procedimentos de construção da obra, assim como a noção cosmológica colocada em jogo no espetáculo –, parece despontar, no exercício de metacrítica realizado pelo Coletivo de Críticos (*), a ideia de deslocamento, seja da relação passiva com o espectador, seja pela contaminação de procedimentos de disciplinas artísticas distintas, seja, principalmente, pela atitude que demanda daquele que a assiste, tanto na tentativa de convívio quanto na pura contemplação.

Em De repente tudo fica preto de gente, não são apenas os corpos dos performers que se colocam em movimento. Mais que andar pelo espaço, o público é provocado a mover-se de seu estado habitual, a colocar sua própria fisicalidade em jogo e a expor-se também ao olhar do outro. O efeito que a proximidade entre performers e espectadores assume sobre o ato performativo, já ressaltado em teorias e práticas cênicas ao longo da história recente, parece ser também uma das forças de ação que constituem a explosão de percepções e possibilidades que De repente tudo fica preto de gente nos suscita.

Em suas ondas de movimento – da aglutinação à degeneração, da integração à individuação, da estagnação ao deslocamento -, as massas corpóreas dos performers mobilizam também estados distintos no público, do desejo à repulsa, da entrega à negação, da aproximação ao afastamento. A obra demanda que público estabeleça também um comportamento físico, tornando-se, assim como os performers, uma força propulsora das dinâmicas que se estabelecem no espaço e no tempo do acontecimento performático, permitir-se ou não o contato, entregar-se ou não ao contágio, realizar ou não o toque, deixar-se, ou não, perceber a si mesmo e ao mundo através da pele e dos rastros que nela ficam.

Como afirmou o próprio Evelin em conversa com o público, é como se houvesse uma “coreografia do espectador”, cujo fluxo de movimentos, assim como o dos performers, também assume uma característica, um padrão, um procedimento no desenrolar do espetáculo.  Não se trata mais apenas de colocar em crise a cognição do espectador ou de provocar sua transição pelo espaço, mas também de fazer-lhe assumir uma postura diante dos corpos com os quais compartilha a experiência. A ocupação compartilhada entre criadores e espectadores no platô coloca em confronto, como num ringue, as tradicionais convenções de quem age e de quem é apenas o alvo da recepção. O espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Há uma escolha (ou uma recusa) a ser feita pelo espectador. Existe uma tomada de decisão do público que preexiste e ultrapassa o ato de olhar e atribuir sentido ao que se vê. Se o público não quer “empretecer”, é preciso agir. E se não quer agir, é preciso decidir ficar do lado de fora do ringue. Para esses, que se mantêm do lado de fora, caberia apenas a contemplação, a construção de um argumento e a necessidade do sentido. Para os que estão dentro não existe contemplação, mas a exposição de todos que compartilham o ato. De repente tudo fica preto de gente é, em sua relação com o espectador, ao mesmo tempo, exposição e contemplação, experiência e sentido, pensamento e movimento.

Assim como o deslocamento da percepção do espectador (sobre si mesmo e sobre a obra), o espetáculo nos levou a refletir, ainda, sobre a noção de campo expandido das artes, em que as categorizações não são mais capazes de enquadrar todos os desobramentos (éticos-estéticos-técnicos-filosóficos) da obra em questão. Retomando a ideia de convivio entre espectador e obra, espectador e espectador, espectador e performers que De repente tudo fica preto de gente proporciona, os campos do teatro e da dança, assim como da performance e da instalação, nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha.

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é também uma questão para a crítica. Se antes, uma categoria se definia por atributos técnicos específicos, hoje, esta se dá menos vertical e mais horizontal, no campo de experiências possíveis. Sendo assim, conceitualmente, temos que intervir sobre a dinâmica da experiência com forma de encontrar nela a possibilidade de sua condição. Aproximar-se de De repente fica tudo preto de gente por um único enquadramento possível seria limitador para a própria experiência relacional com a obra.

No caso desse espetáculo, o público não está meramente passivo ao procedimento, é ele parte fundamental ao movimento de construção dos performers. A obra se estabelece como a correlação entre o convívio estético do espaço, obra e observador, uma instauração que parte de processos de entropias possíveis ao entendimento de proximidade ao outro. A criação assinada por Evelin e pelos performers da Demolition Inc., porém, não nos faz mais indagar, como sintoma das poéticas híbridas que se afirmam na contemporaneidade, se o que está diante dos nossos olhos é dança ou não. Esta pergunta parece não responder outra que se impõe de maneira ainda mais potente na fruição do espetáculo, ao voltar o questionamento não somente ao artista acerca dos procedimentos escolhidos por ele, mas, principalmente, a nós mesmos, espectadores, de como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Exige, sim, olhar para esses espaços fronteiriços como eles se instauram em suas particularidades, não determinar categorias para eles que de algum modo os limitem.

 

Reflexões da perturbação

Metacrítica a partir de Yo No Soy Bonita, de Angelica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

26 de março de 2014

Angélica Liddell não se identifica como feminista, embora as questões invocadas em sua obra coincidam com a pauta do movimento. A distinção provavelmente está nos modos como a artista espanhola as problematiza. Causa estranhamento, à primeira vista, a postura da performer em Eu não sou bonita. Isso se deve a um discurso margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na ocasião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.

É preciso desconfiar também da performer e de sua construção cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da narrativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não reverbera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico (sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção aguçada, urgente, que Liddell joga.

Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Liddell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da verdadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e, portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011) observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”. A do espectador também.

A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos, dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos. O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o empoderamento daquele antes assujeitado.

Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do desejante e, portanto, potencial opressor.

A artista transita por territórios tabus também na complexa cena de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exercida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia). Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da artista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possíveis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.

A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino em uma sociedade patriarcal e dicotômica.

Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no feminino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas. Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” praticando sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e provoca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas), apontando para a manutenção da crueldade machista também no comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como cúmplices e agressores – culpados.

A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem formação em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplicação da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a “evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecendo-lhe a escuridão do trauma.

Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu não sou bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher, cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher. Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a confusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir de si a identificação com toda história da violência de gênero. A denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportável à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limitação à qual cabe ao público – não à artista – reagir.

A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e perseguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se encaixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. Eu não sou bonita é uma tomada de posição: a escolha não pelo imaginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultural logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio, afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma presença imanente e uma presença transcendente.

Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se considerar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja, não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de encontro com o espectador.

Assistir ao episódio dois de Bem-vindo a casa num grupo de 15 pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetáculo Eu não sou bonita com uma interrupção em seu decurso altera também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá, projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela intervenção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, ressaltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação, foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afeta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral, fundamental em um trabalho como Eu não sou bonita.

Espaços para desconfiar do discurso

Crítica de Escola, de Guillermo Calderón, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

16 de março de 2014

Até o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção.

Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução.

Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar.

O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização.

Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população.

Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.

Mesa-redonda Crítica da crítica na MITsp 2014

Além da cobertura crítica realizada na MITsp 2014, no contexto do Coletivo de Críticos, os integrantes da DocumentaCena participaram da mesa-redonda intitulada Crítica da Crítica, com Kil Abreu, Luiz Fernando Ramos e Edelcio Mostaço.

O pensamento crítico sobre a cena contemporânea desenvolveu-se muito nas últimas décadas, mas tem ficado restrito aos circuitos especializados. Já a crítica direcionada ao espectador parece precisar permanentemente se reinventar diante da crise sem fim de interesse e espaço dedicado a ela nos veículos de comunicação tradicionais. De onde vem essa contradição? O teatro participa cada vez menos dos grande debates nacionais por ter reduzido poder de impacto e por isso tem se tornado objeto de especialistas? As transformações recentes que impactam as mídias impossibilitam o adensamento do pensamento crítico e pasteurizam as formas de arte em circulação privilegiando suas formas massivas? A crítica teatral em jornal vai acabar? A internet e a possibilidade que ela oferece de alcançar os espectadores diretamente é o futuro da crítica teatral? As formas coletivas, polifônicas, colaborativas podem contribuir para recolocar o pensamento crítico em diálogo com os artistas e as obras e oferecer ao espectador repertório para sua recepção em tempos de criações compartilhadas?

A mesa-redonda foi realizada no dia 15 de março de 2014, no Itaú Cultural.

Foto: Felipe Vidal.
Foto: Felipe Vidal.

Pão e tinta

Crítica da peça Gólgota Picnic, de Rodrigo García

MITsp 2014

 

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

 

Uma mulher (não) é uma mulher

Crítica de Eu Não Sou Bonita, de Angélica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

14 de março de 2014

A performer espanhola Angélica Liddell habita o palco carregada de memórias e simbologias em Eu não sou bonita. O espetáculo foi criado sobre material autobiográfico, a partir do qual ela elabora uma poética da agressão. Desde uma perspectiva íntima compartilhada, a artista cria um espaço extracotidiano de expressão verbal e corporal contra a violência de gênero. Assume uma postura de enfrentamento da construção cultural do ser mulher, que limita a experiência do feminino, denunciando violências simbólicas e físicas castradoras do desejo e da liberdade.

A afirmação-título de recusa à beleza surge como negação ao imperativo da submissão ao olhar masculino como legitimador. Angélica coloca o público diante da escuridão do trauma. Em sua poética, o erotismo é um elemento essencialmente gerador de mal-estar, tanto quanto a violência autoinfligida e a direcionada ao homem, discursivamente.

É justamente no campo discursivo que Liddell mais abertamente depõe sobre uma condição feminina enfraquecida. A corporeidade é desempoderada seguindo uma concepção binária de mente/corpo, associada ao macho/fêmea, com desprestígio para os segundos termos constituidores dos pares. Os corpos femininos, nesse tecido cultural, carregam distintos tipos de controle – a anulação da presença física; a reificação; a repressão disciplinadora; e a escravidão ao padrão estético dominante são alguns dos apontados pela pesquisadora Elódia Xavier, em Que Corpo É Esse?.

E que corpo é esse que Liddell performa? Ela faz-se presente como um corpo violento, que urra, berra, corta-se, queima-se. Seu corpo é palco da contestação sociocultural. Feito objeto pelo gesto violento do outro, responde como sujeito e objeto de sua própria violência, desfazendo a dicotomia. A presença de um cavalo em cena, mais do que um elemento biográfico e de irrupção do real, traz o contraponto de uma natureza supostamente ingênua e alheia a condicionamentos culturais.  Natureza e cultura: outro binômio a explodir.

O mal-estar maior gerado pelo espetáculo, contudo, está no aprisionamento do corpo feminino à incessante restauração do trauma vivido. O lugar de onde Liddell fala é o da vitimização masoquista (portadora de uma camada de prazer) e do ódio (que implica um bloqueio da alteridade). Um lugar de impotência. Mas qual outro lugar de empoderamento seria possível? Se no campo discursivo a vitimização e o ódio impõem um limite, na dimensão da produção de presença outras afetações se instalam. Há, sem dúvida, uma potência sensível na presença de Liddell que produz um desenho de forças de intensidades variáveis. Contudo, a intervenção de ativistas pró-animais na sessão de estreia na MITsp interrompeu o fluxo dessas forças.

Ainda assim, ao resistir a uma apreensão totalizadora (cuja força continua atuando sobre o espectador tempos depois da fruição, como um cavalo indomado), a experiência do paroxismo da vitimização e do discurso do ódio, em tensão com a materialidade daquele corpo, proporcionada pelo espetáculo, lega ao espectador um saturamento radical do imaginário, que acena para a impossibilidade da manutenção desse status quo. Este é um mal-estar que o espectador pode abafar, restaurando o conforto, ou deixar que lhe tome o corpo de modo que se lance ao enfrentamento da falta de saídas com que a própria Liddell aprisiona seu discurso, para a criação de outros possíveis ao ser feminino.

E ao ser masculino. O aprisionamento cultural do ser homem é algo ao qual o discurso de Liddell não alude. Mas, justamente por sua cegueira, apela ao espectador que reaja. O ato performático, por sua característica de restauração do comportamento, serve ao trauma. Mas também é saber privilegiado da explosão das dicotomias. E só na explosão da dicotomia há liberdade.

Sem fígado e sem fogo

Crítica da peça Anti-Prometeu, de Şahika Tekand

MITsp 2014

 

Em Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia.

Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas.

Foto: Marlon Marinho.
Foto: Marlon Marinho.

Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.) Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações.

No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completamente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça.

A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato.

Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.

 

O campo ampliado das artes cênicas

Crítica do espetáculo De repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin

MITsp 2014

 

A presença da obra de Marcelo Evelin, De repente fica tudo preto de gente, na programação da MITsp, que é uma mostra de teatro, é uma questão interessante para se pensar. Os campos do teatro e da dança nem sempre têm a oportunidade de convívio que aqui se desenha. Diante do compromisso de escrever sobre um espetáculo de dança – e especialmente tratando-se de uma obra com o nível de complexidade da que está em questão – me vejo diante de um problema para a crítica: o paradigma das categorias como campos separados de experiência e saber. O fato de a minha formação ser em teoria do teatro, sem estudos específicos na área de dança, é algo que à primeira vista me constrange o pensamento. Mas, afinal, o que é dança? E o que é teatro?

A ampliação dos campos nas artes – uma ideia que pode ser vislumbrada com a leitura de A escultura no campo ampliado, de Rosalind Krauss – é uma questão para a crítica de teatro. O teatro contemporâneo e a dança contemporânea não se definem hoje por aquilo que os definia algumas (muitas?) décadas atrás, como por exemplo, no caso da dança, a coreografia, no caso do teatro, o drama; embora o discurso comum não tenha assimilado de fato essa virada de liberdade criativa. Ainda vemos críticos escrevendo que algo “não é teatro” com uma convicção constrangedora. Não é a coreografia que define a dança, nem o drama que define o teatro – e as noções mesmas de coreografia e de drama podem ser bem mais amplas do que costumamos pensar. Não é o caso de tirar de cena a coreografia, nem de superar o drama.

Em uma reflexão apressada (uma contradição em termos) me parece que a fundamentação conceitual do espetáculo De repente fica tudo preto de gente em um princípio da física, ou seja, a presença forte de uma ideia orientadora que não está restrita à categoria dança, é algo que amplia o campo, que liberta a criação da repetição de um mero exercício do fazer, de uma variação sobre procedimentos dados. É nesse sentido que me parece que o espetáculo em questão é para qualquer um, porque ele não demanda nenhum conhecimento prévio do espectador, ele simplesmente se dá à experiência. Penso que o contemporâneo não está em um conjunto de premissas estéticas e reflexões endógenas, mas na natureza da relação com o espectador.

Com isso em mente, levanto o olhar para o contexto da MITsp para pensar o lugar deste trabalho no contato com outros assistidos até agora – até porque a ideia de contato e a subsequente contaminação entre corpos é algo que o espetáculo de Marcelo Evelin nos faz viver. O espectador é fisgado para dentro das obras em três instâncias diversas em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, Bem-vindo a casa e De repente fica tudo preto de gente. No primeiro, a relação é subjetiva, impalpável e demanda uma disponibilidade de espírito do espectador. No segundo, o público é convidado a fazer parte da situação ficcional que se estabelece. No terceiro, o espectador, sua materialidade corpórea, é parte indispensável da visualidade e do movimento da cena, tornando-se parte da experiência do grupo de espectadores presentes. Fica tudo preto de gente mesmo.

Mas o preto das imagens criadas por Marcelo Evelin não é opaco. É um preto translúcido que convida o olhar para a beleza do escuro. Na prática da crítica, esse é o grande desafio: mais que discorrer sobre o que já se sabe, trabalhar a musculatura do olhar para enfrentar a escuridão. E o pensamento, como os olhos no escuro, precisa de tempo para começar a discernir as imagens nas sombras.

 

 

Sobre a abertura do olhar nas imagens de arte

Crítica da peça Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci

MIT2014 

 

O espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho.

Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movi-mento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito.

A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas, se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha.

A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.