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Podcast: Conversa sobre Grada Kilomba

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Podcast: Conversa sobre Grada Kilomba
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Daniel Toledo, Daniele Avila Small e Luciana Romagnolli conversam sobre Descolonizando o conhecimento, palestra-performance de Grada Kilomba.

 

Grada Kilomba na MITsp 2016. Foto: Caio Campos.
Grada Kilomba na MITsp 2016. Foto: Caio Campos.

QUANTAS NOTAS TEM UM ATOR? A LÍNGUA DE QUEM FALA EM JAZZ

 

Crítica a partir do espetáculo “An Old Monk”, por Soraya Belusi (Horizonte da Cena)

MITsp 2016

“Dance, dance, otherwise we are lost”

(Pina Bausch)

Há quem fale em alemão, inglês, holandês, espanhol, japonês, russo, português e até todas elas ao mesmo tempo. Mas alguém que consegue falar em jazz, só conheço mesmo Josse de Pawn. Fomos apresentados recentemente, em um encontro de experiência inaugural, por motivo de sua apresentação, ao lado dos músicos Kris Defoort, Lander Gyselink e Nicolas Thus, no espetáculo An Old Monk. Não há legendas para traduzir esse idioma, formado ao mesmo tempo por palavra, som e corpo, com o qual o criador belga me leva a perguntar: quantas notas pode ter um ator? Por quantas vozes ele pode ser atravessado? Quantos espaços e tempos ele pode transportar em si e dar a ver ao outro? Quem é esse homem que fala de si e de tantos outros diante de mim?

An Old Monk, espetáculo apresentado na III Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp – permite evidenciar, a partir das escolhas formais de Josse de Pawn – que assina também  o texto e a direção -, uma maneira singular de se lidar com os materiais e linguagens da experiência teatral, guiados pelo trabalho da atuação do artista belga. Na maneira como lida com a palavra, o corpo-voz, os elementos de cena, com os outros artistas e linguagens, ele amplia de forma considerável o exercício que o teatro contemporâneo nos força, como espectadores, a repensar sobre o trabalho do ator e, consequentemente, a própria noção de teatro.

Autor, diretor, bailarino, ator-performer, Josse de Pawn condensa, em 1 hora e dez minutos, o tempo de uma existência. As fases da vida de um homem são apresentadas como melodias passageiras, nas quais se estruturam o improviso, o solo, a repetição sobre um mesmo tema: o envelhecimento. O “Monk” do título remete-se, igualmente, ao pianista e gênio do jazz Thelonius Monk, inspiração para a criação do espetáculo, ao próprio De Pawn, que afirmou ter tido esse desejo de se tornar um monge, e ao “personagem” da narrativa, esse homem que dança rumo ao envelhecimento.

Não se pode dizer que o espetáculo é sobre o pianista Thelonius Monk, embora seja também sobre ele. É também sobre De Pawn, mas não se constitui como biografia. É sobre o homem, um homem que dança. Monk, sem dúvida, está presente – e dizem que intercalava suas apresentações com longos momentos dançantes. Ele e De Pawn falam a língua do jazz.

Pensar a maneira como o artista belga executa tal tarefa é também refletir sobre o ator-performer do nosso tempo, capaz de utilizar-se de todo seu instrumental para romper com as barreiras das categorias de linguagem e assumir uma multiplicidade de vozes  que dialogam e se tensionam – na sintonia e na dissonância. A quantos tempos e espaços somos mobilizados na cadeira do teatro? Ao tempo do agora, do encontro, do acontecimento-show, ao da narrativa, que navega em uma existência como se num sonho ou num “filme” de memórias, ao da música, em que cada canção nos transporta para um universo completo? Monk é como um velho Krapp, que revê sua existência pelos momentos mais marcantes, condensa sua existência em uma última gravação ou em uma última nota.

Se dissermos, sobre An Old Monk, que vamos a uma peça de teatro, não estaremos dando uma resposta mentirosa, mas uma definição, no mínimo, limitada. Segundo o criador, trata-se de um concerto teatral, em que uma forma penetra a outra como se já lhe pertencesse, tendo o jazz como elemento unificador. De certa maneira, De Pawn faz música, enquanto seus colegas músicos atuam. E os opostos também acontecem.

Há uma sofisticação de elaboração nas canções de jazz que se unem a uma espontaneidade própria do improviso e do jogo entre os integrantes do grupo, fazendo com que rigor e liberdade de experimentação caminhem juntas. Isso se dá também em An Old Monk: há algo que se cria no agora, no presente, no junto, que estabelece um pacto muito próprio com o espectador. De Pawn e os três músicos integrantes desse “quarteto” também se apresentam – não representam apenas – para o público. Depois do nosso encontro de 1 hora e poucos minutos, posso dizer que ainda não falo em jazz, mas já entendo o que significa essa língua, a senti com o corpo e com a mente, como no breve espaço de uma dança.

Apolo não!

Crítica do espetáculo “(A)Polônia”, deKrzysztof Warlikowski, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Escrever no calor da hora sobre um espetáculo com a complexidade de (A)polônia, de Krzysztof Warlikowski, é uma temeridade. As múltiplas linguagens trazidas à cena (música, teatro, vídeo, instalação, performance, stand up, conferência acadêmica, manipulação de marionetes), o manancial de referências mais ou menos explícitas (que vão de Ésquilo a Jonathan Littel, passando por Eurípides, Kafka, Coetzee, Hanah Krall, Godard e muitos outros) e a ambição de articular algumas das questões humanas mais arcaicas (sobre a necessidade do sacrifício pessoal em prol de algum ideal ou mesmo de pessoas próximas; sobre a rebelião contra os “deuses” e o destino inaceitável por eles imposto; sobre a tragicidade inerente a qualquer decisão humana e a inescapável “culpa inocente” dos heróis trágicos) tendo em vista a necessidade de elaborar o passado recente da Polônia e expiar a culpa dessa nação no extermínio dos judeus, que “é o legado terrível que pesa sobre nossos descendentes” (no dizer do próprio Warlikowski), mereceriam sem dúvida um tempo e um espaço mais dilatados para a construção de um pensamento mais consistente. (Advertência ao leitor: a construção hermética, para não dizer confusa, desta introdução teve a pretensão de traduzir para a prosa da crítica a minha experiência como espectador diante das múltiplas camadas do espetáculo).

Sim, é uma temeridade escrever no calor da hora sobre um acontecimento político-teatral que ainda estou longe de ter conseguido digerir. As simplificações redutoras e os juízos apressados me parecem, neste caso, um destino tão inescapável quanto o dos heróis (gregos e modernos) postos em cena por Warlikowski. Seria prudente esperar por um momento mais oportuno, em que as condições para essa reflexão estivessem mais maduras. O problema é que, supondo que este momento algum dia possa chegar, talvez já seja tarde demais.

Amanhã (13/3, data das mais eloquentes, pela associação do número 13 ao Partidos dos Trabalhadores, inspirado na sua origem pelos mesmos ideais que presidiram a criação do “Solidariedade”, movimento político polonês que tentou combater sob um viés proletário o conservadorismo histórico daquele país), a imprensa golpista da nossa (a)polônia, tomada por um curioso furor santo de indignação seletiva, está convocando uma manifestação “patriótica” contra “todos os corruptos” (os “judeus” do nosso tempo), instaurando artificiosa e espetacularmente uma polarização entre “nós” (os justos, os puros) e “eles” (os corruptos, os impuros). Por mais que devam ser preservadas as diferenças entre o contexto histórico brasileiro e o polonês, entre o nosso tempo e a primeira metade do século XX, quando o fascismo e o nazismo levaram ao extermínio de milhões de pessoas, por mais que pareça forçada a comparação, agora, no calor da hora, não pára de ecoar em mim uma célebre passagem das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, na qual se lê: “O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história [calcada sobre a ideia de progresso] da qual emana tal assombro é insustentável”. A pergunta, sob essa ótica, não é a do humanista alienado – “Oh, como todos esses fatos horríveis puderam acontecer?! Ohhh!” –, mas sim a do materialista que lê a história a contrapelo: por que fenômenos como o fascismo, o nazismo e a Shoah não acontecem muito mais frequentemente?

Na realidade, com o mundo em guerra (a lista de conflitos ocorrendo no momento é tão extensa que não caberia aqui, incluindo aqueles que, na nossa particular guerra brasileira, levam ao genocídio de milhares de jovens negros todos os anos, evocado nesta MIT pela impactante performance Em legítima defesa, um dos pontos altos do festival), com todas as polarizações étnicas, religiosas, políticas e econômicas entre o Ocidente e o Oriente, com o recrudescimento de uma Guerra Fria que muitos acharam que estava definitivamente superada após a queda do muro, etc, etc, etc, talvez atos de inspiração nazi-fascista aconteçam muito mais frequentemente do que os olhos sempre marejados do humanista amigo da paz seriam capazes de enxergar. É que, e esta me parece ser uma das intuições estruturantes do espetáculo de Warlikowki, os pressupostos ideológicos que tornaram possível a eclosão dos totalitarismos do século XX continuam vivos e pulsantes nesta aurora do século XXI, constituindo talvez o “terrível legado para os nossos descendentes” de que fala o espetáculo (A)polônia.

Se, de acordo com tudo que acabo de dizer, A(polônia) não é apenas a Polônia, mas também o Brasil ou qualquer outro lugar em que as condições para fenômenos assemelhados à Shoah continuem a existir, eu ousaria dizer que o espetáculo a que assisti ontem não é sobre a Polônia, mas sim sobre Apolo. A imagem-síntese que consigo extrair do caos de estímulos visuais e palavras heterogêneas que foram literalmente despejados sobre os espectadores, de forma só aparentemente arbitrária (como no caso de qualquer obra de arte que mereça este qualificativo), é a imagem do deus grego Apolo, nu, com cílios postiços e o piru pintado de azul, tendo nas costas uma gigantesca tatuagem de uma forca da qual pende, enforcada, a estrela de Davi. A interpretação do deus como uma figura caricata, ridícula, afetada, grotesca, obscena é, posteriormente, numa segunda aparição em vídeo, reforçada por um discurso do mesmo Apolo, extraído da Oréstia, de Ésquilo, no qual, tentando defender Orestes pelo assassinato de Clitemnestra, sua mãe – o matricídio, no direito arcaico grego, era punido pelas Fúrias, divindades vingadoras dos crimes de sangue, que perseguiam até a loucura e a morte os culpados –, o deus afirma que a mãe seria só um vaso, um recipiente no qual o pai, o único verdadeiro responsável pela criação, depositaria sua semente e seu sangue. Orestes, sob esta ótica, não teria o sangue da mãe e não mereceria ser perseguido pelas Fúrias. Para além dos traços radicalmente misóginos que esse discurso têm para ouvidos contemporâneos, que Warlikowski habilmente maneja no sentido de aprofundar a repulsa de seu público pela figura do deus, os dois Apolos de (A)polônia têm em comum a recusa de toda mistura, de toda impureza, pregando literal e simbolicamente o extermínio do outro, seja judeu, seja mulher.

O espetáculo Apolônia, agora sem o parênteses (cuja manutenção serve a uma leitura distinta da proposta aqui), traz em seu título uma palavra que, etimologicamente, diz respeito a toda criatura “oferecida a Apolo”, a toda criatura que mereceria ser sacrificada pela sua impureza, pela sua alteridade, pelo fato de ter mais camadas do que aquelas que cabem na dicotomia bom-mau, justo-injusto, ético-corrupto, pelo fato de não ter apenas o sangue do pai (a lei, a fé, a ética de um Sergio Moro, figura das mais apolíneas em seus terninhos justos cortados sob medida, não por acaso merecedor de prêmios provenientes de instituições tão isentas quanto a Globo ou a Veja). Se, no plano do discurso, com a apresentação de dois Apolos derrisórios, Warlikowsi diz um basta a todos os sacrifícios em nome desse deus, no plano da própria constituição formal do espetáculo manifesta-se uma recusa de qualquer ideal de limpeza, de clareza, de organicidade, de harmonia, de equilíbrio, de beleza, características normalmente associadas ao nome de Apolo.

Quando comecei a escrever este texto, pretendia concluir criticando Warlikowski por sua visão unilateral de Apolo, que tem dois epítetos contraditórios: se por um lado é Febo, o resplandecente, aquele que impõe limites claros a todas as coisas (sua imagem mais conhecida), por outro lado é Lóxias, o obscuro, aquele cujos oráculos precisam sempre ser interpretados, sendo que o fato de mal interpretá-los não raro é a principal razão da queda dos heróis trágicos (vide o exemplo de Édipo, por exemplo). Pretendia dizer que, ao apresentar o deus de forma unilateral, fechando os olhos para a sua fundamental ambiguidade, e investindo numa montagem “puramente dionisíaca”, ele paradoxalmente teria acabado sendo mais apolíneo do que gostaria. Pretendia dizer, em suma, que ele não teria ouvido bem a lição de Nietzsche no Nascimento da tragédia. Ali, o filósofo diz que, ao matar Dioniso, o racionalismo socrático, em nome de Apolo, das distinções conceituais claras e distintas, teria acabado por matar também Apolo, já que Apolo e Dioniso seriam as duas faces de uma mesma moeda, nomes emblemáticos dessa ambiguidade ou tragicidade constitutiva do humano, dessa guerra eterna que é a vida. Ao contrário de Sócrates, eu pretendia dizer, em sua tentativa de matar Apolo, de interromper a ruína monumental feita dos cadáveres de todos que foram assassinados em seu nome (lembremos do “anjo da história”, de Paul Klee, na leitura de Benjamin), Warlikowski teria matado também Dioniso.

Era isso o que eu pretendia dizer, me atendo a uma crítica mais imanente das discutíveis opções formais feitas pelo diretor, que me fizeram sair do teatro com a sensação de ter visto uma nova repetição de uma velha fôrma, um dispositivo eminentemente irônico na lida com a tradição que teve grande potência no teatro dos anos 1990, mas que, à força de sucessivas repetições, acabou por esvaziar-se, convertendo-se em fetiche formalista. Mas, neste momento, a verdade é que eu não posso dizer apenas o que pretendia dizer. Escrevi esse texto sendo atravessado pelas palavras, pelo momento histórico que estamos vivendo, como os personagens de Ça ira, ponto culminante da MIT deste ano. As placas tectônicas que foram finalmente postas em movimento pelos governos Lula e Dilma (a despeito de todas as legítimas críticas que possamos fazer a certos aspectos de seus respectivos projetos de governo, o que não tem nada a ver com saber se eles são puros ou não) estão gravemente ameaçadas de serem novamente imobilizadas pela força reacionária de elites ancestrais que querem conservar os seus privilégios a qualquer preço, que, como em Ça ira, recusam visceralmente a ideia de uma verdadeira igualdade política. Contra essas elites, contra a catástrofe que se anuncia tão próxima, faço então coro com Warlikowski: Apolo não!

A segunda vida

Crítica do espetáculo An Old Monk, de Josse de Pauw, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Ele tinha quinze, dezesseis, dezessete anos. Sentia que não pertencia à sua vida, como se tivesse errado de endereço. À sua volta todos dançavam muito, falavam muito, viviam em bando, se divertiam. Contavam sempre as mesmas anedotas: do último porre, daquela viagem de ácido muito louca, dos melhores baseados, das primeiras transas (descritas com aquela falsa indiferença juvenil que queria se fazer passar por experiência). Tinham quinze, dezesseis, dezessete anos e pareciam achar que aquela era a melhor época de suas vidas. Ele não. Não cabia em seu corpo, que transbordava de pelos esquisitos e espinhas dolorosas. Adolescer era um sofrimento para o qual ele ainda não havia encontrado nenhum nome. Um dia, numa festa, ficou inquieto quando uma amiga disse que estava angustiada. A palavra era bonita: an-gús-ti-a. Tinha o sabor de uma fruta exótica, de uma fruta que ele jurava nunca ter comido. Foi quando leu num desses livros que só se leem aos quinze, dezesseis, dezessete anos, que a vida está em outro lugar. E acreditou. Afinal, a vida, a vida de verdade, tinha que estar em algum lugar! Ele tremia de medo pensando que não viveria o suficiente para conhecê-la. Muitas noites, com o próprio sexo nas mãos, rogava a Deus para não morrer virgem. Por acaso, descobriu um programa de intercâmbio escolar e acabou se mudando para a Holanda, atraído pela miragem da maconha liberada. Quem sabe dali não viriam outras libertações? Mas, chegando lá, o sentimento de estrangeiridade radical só se agravou. Naquela época, Camus foi um vício. Aprendeu holandês lendo as legendas de uma novela americana, The Bold and the Beautiful. Aquela língua estranha, assim sem ele perceber, se gravou nele. Uma língua-mãe que se escolhe aprender às vezes é mais pregnante que a língua e que a mãe que nos foram destinadas pelo acaso.

Quando voltou do ano de intercâmbio, seu pai, tentando uma reaproximação, começou a levá-lo para os shows de jazz que frequentava compulsivamente. Aos vinte, vinte um, vinte dois anos de idade, o garoto viu e ouviu músicos cujos nomes nunca conseguia lembrar, mas que seu pai sempre dizia que eram “bons pra caralho”. A sensação que tinha nesses shows era esquisita. As primeiras notas já o transportavam para muito longe dali. O fato de que os músicos pareciam tocar mais para si do que para os outros era um pretexto para ele se desconectar. Em geral, ficava pensando na vida que poderia ter sido, ou na vida que ainda poderia ser, mas que… Muitas vezes, se sentia culpado por não conseguir desfrutar devidamente daquele privilégio, já que os concertos costumavam ser caros: até achava os músicos tecnicamente bons, mas parecia que alguma coisa lhe faltava, talvez um sentido mais apurado para fruir o que não cabe em palavra nenhuma, a liberdade de se entregar a um fluxo de sensações mais brutas, abstratas, resistentes a uma compreensão racional.

Aos trinta, trinta e três, trinta e cinco anos, seu corpo continuava não vestindo bem, mas ele tinha uma vida que os outros consideravam boa. Ou, pelo menos, normal. Mulher, filho, um trabalho que lhe permitia viver sem grandes preocupações financeiras. Eram tantas as obrigações a cumprir que ele só raramente se lembrava de que a vida ainda não tinha lhe dado nem um décimo do que ele esperava. Como quando era garoto, ele continuava com medo de morrer cedo demais. Pelo menos, já não era mais virgem.

Aos quarenta anos fez uma viagem a São Paulo, para cobrir um festival internacional de teatro. Algumas pessoas consideravam que ele era um crítico teatral, embora aquela roupa lhe caísse como um terno alugado numa loja de segunda mão. Foi ver uma peça de um diretor belga, chamada An Old Monk. Como sabia que teria de publicar uma crítica em menos de 12 horas, se informou antes sobre Josse De Pauw, o autor, diretor e performer do espetáculo. Descobriu que ele não chamava seu trabalho de uma “peça de teatro”, mas sim de um “concerto teatral”. Começado o espetáculo, entendeu por quê.

Em cena, uma banda com piano, baixo elétrico e bateria atacou um jazz como aqueles que costumava ouvir ao lado do pai, vinte anos antes. Lembrou do velho e pensou com um sorriso de canto de boca: “Esses músicos são bons pra caralho!” Na sequência, viu um senhor corpulento, careca, com uma barba branca comprida, mistura de Xico Sá e Paulo Cesar Pereio, entrar em cena dançando, se entregando ao fluxo da música. Aquele senhor dançou por um longo tempo, até ficar realmente cansado. O procedimento era muito interessante, porque fazia do cansaço uma experiência corpórea real, para além da mera representação. Então, dialogando sempre com o ritmo da banda, que continuaria a tocar ao longo de todo o espetáculo, e tendo sempre em vista a necessidade de construir uma relação inclusiva com o seu público, Josse De Pauw começou a sua narrativa. A mágica do dispositivo, simples mas rascante, estava no fato de que, apesar de falar de experiências aparentemente autobiográficas, o performer usava a terceira pessoa, transformando a sua vida em uma ficção e assim realizando a quimera de converter a própria vida em obra de arte. (No epílogo do espetáculo, aliás, essa ideia era reforçada com a projeção de imagens do corpo nu do artista com interferências gráficas que propunham diversas outras narrativas possíveis para aquele suporte material.) Antes de compreender o fio condutor da narrativa, na qual De Pauw usava a dança como metáfora para falar das três grandes épocas de sua vida (a juventude, na qual ele dançara sem nunca cansar e o tempo parecia infinito; a maturidade, quando as obrigações o tinham levado a parar de dançar; e a velhice em que se encontrava agora, quando, depois de buscar inutilmente pelo silêncio e a solidão característicos da vida de um monge (monk), ele havia finalmente, a despeito de todas as limitações físicas, recuperado o desejo de dançar e cantar como Thelonius Monk), o garoto com terno de crítico foi atravessado por uma estranha sensação de pertencimento: Josse De Pauw não apenas falava holandês, sua segunda língua materna que ele julgava ter esquecido, mas, sobretudo, ao atuar como uma espécie de repentista do cool jazz, transpunha o abismo que sempre o separara da música: a ausência de palavras. Josse De Pauw celebrara diante de seus olhos estupefatos o casamento entre o fluxo musical da vida e a narrativa necessária para transubstanciar sensações brutas em sentidos inteligíveis.

Eu saí então do teatro dançando, com a impressão de estar afinado com o ritmo da vida, me regozijando por não ser mais um estrangeiro neste mundo. Como disse De Pauw: “Nada de demasiada paz, porque ainda há tempo para uma outra vida, se preciso for. Para outra vida, e talvez uma vida melhor, também, mesmo que a anterior já tenha sido boa.” Uma segunda vida, não resta dúvida, fundamentalmente dependente da possibilidade de articular narrativamente os fragmentos dispersos da nossa experiência descontínua do tempo. O que, a meu ver, é não apenas a tarefa da arte, mas sobretudo a da crítica.

A quem servimos enquanto rimos?

Foto: Caio Nigro.
Foto: Caio Nigro.

Crítica a partir do espetáculo A Tragédia Latino-Americana, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/ DocumentaCena)

MITsp 2016

São muitas, decerto, as tragédias latino-americanas das quais se poderia tratar em um espetáculo teatral. São muitas, de igual modo, as perspectivas sob as quais se pode narrar essas tragédias, que decerto serão diferentes segundo o ponto de vista a partir do qual se observa a vida no continente que habitamos e construímos juntos. Enquanto quem o vê com olhos de colonizador pode associar essas tragédias aos povos que originalmente habitavam o território latino-americano, tratando-os como bárbaros, peladões, bugrada, primitivos, atrasados, molengas, lamentáveis, pateticamente orgulhosos, pouco gentis ou simplesmente servis, quem observa o mesmo continente sob a ótica do colonizado – que agora luta para descolonizar-se – talvez associe essas mesmas tragédias à servilidade de nossas sabotadoras elites, quase sempre mais alinhadas aos interesses da metrópole do que às sociedades que, seja antes, durante ou depois do período colonial, por aqui se constituíram. Ainda que muitas nuances existam entre essas duas visões, parece ser interessante percebê-las como perspectivas divergentes e, quiçá, concorrentes, em relação à construção da nossa história.

Inspirado em obras da literatura latino-americana e composto por sucessivos quadros que, ao longo de quatro horas, remontam a diferentes recortes de nossa realidade social, o espetáculo A Tragédia Latino-Americana, criado por Felipe Hirsch e Os Ultralíricos, dispõe em cena personagens como o jesuíta catequizador, o sujeito em processo de alfabetização, o colonizador português, o pescador macumbeiro, a estudante evangélica, a trabalhadora do lixão, o intelectual latino-americano, o deficiente visual explorado, a travesti marginalizada e até mesmo uma epígrafe existencialista que traz à cena questões sobre as tiranias do justo e do injusto. Permanentemente substituindo-se em meio a um cenário que é ao mesmo tempo construção e ruína, tais personagens nos convocam a enfrentar questões políticas que permeiam tanto nossa história quanto nossa experiência social atual.

Ainda que diferentes vozes e diferentes lugares de voz ganhem o palco ao longo da montagem, o que se tem em cena são, quase sempre, situações de subordinação à conhecida narrativa contada e disseminada pelo homem branco. Fazem-se presentes, não por acaso, conflitos relacionados ao machismo, ao sexismo e ao racismo, dando a ver um contexto social cujos parâmetros civilizatórios recorrentemente remetem a critérios criados muito longe do território latino-americano. Constitui-se, então, um contexto em que o estupro – seja sexual, cultural ou de outras naturezas – aparece como ameaça permanente, e no qual o conservadorismo se manifesta a partir da distinção de papéis e comportamentos bastante definidos para homens e mulheres, assim como pela travesti que, em pleno ano de 2016, parece ainda não ter conquistado seu ambicionado artigo feminino. E ainda que autores de Cuba, Bolívia e Equador se façam presentes entre os textos que inspiram a dramaturgia do espetáculo, é no mínimo curioso perceber que tal representação não aconteça entre as fisionomias que levam tais textos à cena.

Também chama atenção, em A Tragédia Latino-Americana, a reprodução de uma agressividade crítica – e por vezes cômica – que se dirige aos nomes que constituíram e constituem nossa história oficial, deixando em segundo plano a critica às ideologias e visões de mundo que os movem. Percebemos, com isso, traços que remetem à infrutífera pessoalização dos nossos conflitos sociais e políticos, cuja complexidade decerto aumenta quando enfrentamos as mal-contadas raízes e engessadas estruturas que os sustentam ao longo de tantos séculos.

Vestidos com trajes que remetem a algum tipo de aristocracia, os atores que conduzem a montagem se organizam entre cenas individuais, duplas e coletivos e nos oferecem uma visualidade descolorida em que predominam o preto e o branco. Talvez como modo de apresentar a polarização que atualmente nos caracteriza, a ausência de matizes reforça os contrastes e a dificuldade de diálogo tão visível na cena quanto nos dias em que vivemos. E a partir dessa perspectiva, tanto o espetáculo quanto boa parte da sociedade brasileira parece colocar “no mesmo balaio” movimentos relacionados à reivindicação de direitos e à restrição de direitos do outro, desconsiderando, em certo sentido, a franca desigualdade de poder que constitui a origem da civilização latino-americana conforme a conhecemos hoje.

Mesmo lançando-se em direção a questões densas e territórios de claro conflito ideológico, a montagem que se apresenta como tragédia curiosamente provoca, em muitos momentos, o riso do espectador. Mas se estamos diante de uma visão que destaca nossas próprias tragédias, historicamente associadas à impossibilidade de autogoverno e autodeterminação, parece-me interessante que examinemos, cada um de nós, do que, exatamente, estamos rindo.

 

Publicado no site da MITsp em 10 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/a-quem-servimos-enquanto-rimos/

“Se eu pudesse, voltaria hoje”

Crítica do espetáculo Cidade Vodu, de José Fernando Azevedo, por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

No teatro, quando a narrativa biográfica ou confessional se destaca na dramaturgia e na montagem como elemento formador do trabalho, é como dizer que a escolha somente pela ficção não daria conta. O relato íntimo te impõe a crença, não se pode fugir do que se está ouvindo nem ficar no lugar confortável da ideia de “teatro, mentira”.

Dentre inúmeras características dessas dramaturgias, destaco duas: quando se decide falar de si, entende-se que sua história/texto tem um conteúdo com capacidade de ampliação, que é, de certa maneira, coletivo, que diz respeito a muita gente, e por isso é importante ser dito – algo que nem sempre se dá. O outro aspecto é que a afetividade intrínseca às falas geralmente produz a conexão com o público. O que eu tenho a dizer importa, estou emocional e afetivamente envolvido com o relato, e, se o que é dito é de fato muito relevante, optar por uma crítica que prioriza os aspectos técnicos do fazer teatral, além de a mim ser questionável e gerar um desconforto, diminui a importância do enunciado, algo que, em se tratando de Cidade Vodu, criação do Teatro de Narradores, eu não teria autoridade e nem o direito de fazer de dentro deste meu corpo branco.

Cidade Vodu escolhe relatos datados na história para desenhar uma linha do racismo nos últimos séculos sob a perspectiva da nacionalidade dos atores do espetáculo, a bem dizer, haitiana. Numa sequência cronológica, as falas começam no período escravista e alternam contar casos que descrevem com minúcias a bárbara violência sofrida pelos povos negros, com discursos dos homens que detinham o poder à época. Na sequência, tratam do período colonial do Haiti sob os desmandos de Napoleão Bonaparte, de contínua crueldade. O último recorte fala da imigração haitiana para o Brasil após o terremoto de 2010 e da entrada das forças de paz da ONU em parceria com o Exército Brasileiro (MINUSTAH). Neste momento, os relatos se voltam para a vida dos próprios atores, artistas haitianos recém emigrados para o Brasil, em decorrência da condição de vida insuportável e insustentável após o terremoto. Parte mais tocante dos relatos, porque as dores são inimagináveis e aconteceram exatamente com aquelas pessoas, a ênfase está no tratamento recebido pela população haitiana tanto no país nativo, quanto no Brasil e no percurso geográfico da migração. As memórias mais uma vez de violência, truculência por parte do Exército (uma gente que propõe devolver a paz com atitudes criminosas) e do preconceito vivido em terras brasileiras fecham a narrativa apontando o racismo como componente estrutural das sociedades e não simplesmente circunstanciado no tempo histórico.

Dado o valor da proposta e sua potência, então, cabe dizer que a estreia no dia 7 de março, no impactante espaço da Vila Itororó, padeceu por alguns problemas. No percurso itinerante do espetáculo, falhas de projetor e microfones dificultaram a compreensão do texto, primeiro, porque muito não se ouvia e, segundo, porque a ausência da legenda projetada quando as falas estavam em outra língua interrompia a possibilidade de seguir o fio dramatúrgico. Aparentemente, tinha mais público do que o viável para que todos conseguissem acompanhar as cenas tendo condições de realmente assistir ao que acontecia. Fatos que precisam ser revistos e que sem dúvida melhorarão as possibilidades de recepção.

Mais ou menos na metade do espetáculo tem uma festa, um encontro proposto pela encenação. Num espaço amplo, o público é convidado a se sentar, comer, beber, conversar e dançar ao som de músicas típicas haitianas cantadas pelos próprios artistas. Um dos atores apresentou o espaço para mim e para outra espectadora (Júlia) como sendo a Cidade “Vodu”, este boneco no qual são projetados castigos nos outros quase sem possibilidade de defesa. Conversamos um pouco. Júlia perguntou se ele gostaria de voltar para o Haiti, resposta: “Se eu pudesse, voltaria hoje”, e riu. A troca de olhares foi por empatia, embora nada possamos saber, Júlia e eu, dessa angústia. Mesmo vítima de vodu, a cidade produz um encontro alegre, caloroso. Alguns relatos sofridos surgiam em busca de cumplicidade, mas não diminuíam a atmosfera espirituosa de quem propõe a paz a quem oferece quase sempre as costas.

“Nós estamos aqui um por causa do outro”, frase de um dos relatos e eco histórico. Se o estar junto veio constantemente à  base do choque, do enfrentamento, da resistência e da luta, Cidade Vodu propõe um encontro festivo contra o modus operandi do nosso mundo que vê lógica em entrar em guerra para alcançar a paz. Se a proposta é o encontro, como não, encontremo-nos.

Agir em tempos mortos: o teatro e a natureza-morta de todos os dias

Crítica do espetáculo Still Life (Natureza-Morta), de Dimitris Papaioannou, , por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

Natureza-morta. Natureza, da biologia, do corpo, organismo. Morta, o que já foi vivo, a concretude no estado físico da matéria, dimensão só apreendida no tempo. Ao manter o olhar para obras categorizadas como natureza-morta, dois traços inerentes ao gênero conduzem a narrativa entre a materialidade do objeto (comida, corpo, flor) e o tempo posto até a morte. Um traço é sólido, o outro estendido. A nomenclatura em português remete a algo findo (morreu, ponto); em inglês, os objetos aparentemente inanimados têm sobrevida, still life.

Still Life (Natureza-Morta), espetáculo com direção do grego Dimitris Papaioannou, estreou dia 4 de março no Sesc Vila Mariana, na programação da 3ª MITsp. A tensão latente no título (que em princípio é apenas a dobra do mesmo nome em língua diferente) dá a ver, já de antemão, a questão que atravessa as cenas da montagem, nas quais, por meio de exaustivas repetições, sete atores implicam-se em manter vivo o objeto morto.

Justificados pelo mito de Sísifo, estar morto aqui pode ser tomado como não sair do lugar, embora em movimento. Ou, numa inversão à lógica própria da natureza-morta, o corpo que se mexe está vivo (tentando), o tempo gasto com repetições é o que morre. Como gerar ação no tempo-morto e olhar a natureza-morta sob a perspectiva da ação dramática, do teatro, não da pintura. Como agir na imobilidade do tempo. Papaioannou, e esta é a proposição deste texto, constrói uma refinada dialética: corporifica o tempo enquanto dilata o corpo (dos atores) na duração das cenas.

O espetáculo começa com a luz da plateia acesa. Sentado ao centro do proscênio numa cadeira escura, o ator manuseia uma pedra enquanto olha para o público em aparente neutralidade. Lentamente a luz da plateia se apaga, o palco, vê-se agora, é um todo preto, do chão ao teto que, ainda sem nitidez, revela uma bolha negra brilhante sobre todo o tablado. Um sujeito entra e retira a cadeira do ator, seu corpo, impassível, permanece na mesma postura de sentado, mas, agora, é visível que para estar ali em ilusória imobilidade é necessário muito esforço, trabalho físico. Mesmo quando parado, vê-se que está atuando – é possível que a ideia de ação seja tomada por esta imagem, se não houvesse ação, o corpo cairia. Ação é força.

A natureza-morta no teatro é surpreendida pela condição primordial da ação. Mesmo na imobilidade. E a contar pela física presente nos corpos dos atores, agir (estar vivo) é exercer força sobre. Aos poucos o ator sai da posição, caminha até o fundo do palco e desaparece. Tempo. Sons de objetos caindo, tipo azulejo, som de obra. Tempo. Caminha do fundo, em direção à frente do palco, outro ator carregando uma grande parede nas costas, bem grossa na largura, quase o dobro da altura do ator, comprida para as laterais de modo que seria impossível abraçá-la. Um peso-morto sobre as costas. Durante um tempo superior à necessidade de entendimento da ação o ator forçará seu corpo contra a parede com o objetivo de mantê-la em pé. A constância das cenas segue esta condição, a de estravar o tempo do entendimento, sobrando por fim apenas a materialidade dos objetos e do corpo em tensão. O esvaziamento do sentido narrativo das operações desenha um tempo posto em lentidão, em que vislumbra a qualidade estática do quadro pictórico. O tempo não tem cronologia corrente, seu corpo é definido numa hora parada, suspendida, em que sucessivas ações se repetem como que no mesmo instante. Um tempo-corpo que, na vida, o olho nu é incapaz de perceber. Como que numa câmera extremamente lenta (negativa), parada num só segundo, no qual é possível ver infinitas ações se processando em repetição – eternidade.

Os condicionantes desta temporalidade só se sustentam, portanto, na crueza da fisicalidade da matéria, sem significações. Ou se tem sons produzidos pelos objetos, ou silêncio. Os sons são ainda enfatizados pelos microfones dispostos no chão do palco, existem na condição de materialidade das ondas sonoras – quando cacos de azulejos caem da parede, faz-se barulho, quando fitas adesivas são puxadas do chão, idem. A iluminação vai do clarão à escuridão, sem semântica. No cenário, as superfícies são sólidas, líquidas ou gasosas. A parede é um bloco, o plástico em formato de rede, que no início do espetáculo era uma bolha negra brilhante no teto, aos poucos é iluminado, e transparece na maior parte da peça com a paradoxal função de estocar fumaça. A parede sólida, por um lado, se desfaz em pedaços, a fumaça, por outro, ganha corpulência na moldura do plástico e, por vezes, transforma-se em outros substantivos: nuvem, mar, célula; todos disponíveis ao toque, podendo mudar de forma com o contato de uma pá.

É o tempo dilatado que aproxima o espectador da materialidade, ainda que a narrativa, poderosa, suba à superfície da cena como pequenos relâmpagos. Dilatar o tempo é como ver pelo microscópio e perceber os detalhes das coisas antes do organismo – antes da causalidade, da narrativa, de dar nome aos órgãos. É a parte em que tudo é uno, corpo que também é parede, que é tempo. Corpo-parede-tempo, composição que só se modifica pela alternância dos estados físicos.

Uno e concreto, como o corpo dos atores. Com roupas da mesma tonalidade, que pouco se distinguem entre si, remetendo por vezes à vestimenta de trabalho, os atores estão no palco como massa de um só, bloco de um, coro. Não tem “eu”, não tem personagem, figuras etc., estão no palco atuando, apenas, agindo. Tomando recorrentemente um o lugar do outro no que seria uma mesma partitura física/coreografia, seus corpos se conectam e apresentam-se como único. A imagem mais forte que pode ser descrita como exemplo é a sequência em que os atores sucessivamente atravessam pelo buraco do centro da parede; um vindo da parte de trás, o outro “entrando” pela frente, os desenhos dos corpos revelam o jogo de quebra-cabeças no qual apenas um corpo inteiro pode aparecer, ainda que formado por partes de mais de um ator. Assim, as partes de cima do tronco pertence a um, as de baixo a outro ator, e outras múltiplas alternâncias neste sentido se dão. O corpo é um, mesmo fragmentado, expandido por todos.

Metáfora contundente das repetições diárias, do trabalho massivo, o rolar eterno da pedra de Sísifo, o espetáculo pode ser visto como esta crítica que se opõe a viver sob a restrição do mito. Porém, se o mito (a narrativa) é o que te faz morrer, still lifeé a força que te mantém vivo (agindo) em tempo-morto. O tempo na vida não se configura em suspensão, fugir do mito, então, está mais próximo da utopia. Em vez de estar fadado ao inevitável peso da história, propõem-se uma autonomia da narrativa, mas em relação dialética. A rotina está lá, morta, você não.

O peso da parede sobre as costas dos atores deixa no máximo um rastro de pó. A parede, inclusive, não passa de uma espuma de grandes proporções. O morto, ainda, não deixa de ser bonito. Na penúltima cena do espetáculo, os atores trazem até a frente da plateia uma mesa na qual se sentam para uma refeição tipicamente mediterrânea. Frutas, frutos, louças, objetos inanimados dos quadros de natureza-morta. O aroma das ervas e azeitonas é bom. A cena simula uma refeição entre amigos, os atores gesticulam como se estivessem conversando, mas não há som. Aliás, não há fala no espetáculo, a voz não se propaga em tempo parado. E não é preciso ouvir a voz neste caso, porque qualquer um é capaz de supor as banalidades que são ditas nas refeições cotidianas frugais. Qualquer um ouve este silêncio. A voz da narrativa está nas cabeças dos espectadores, sem fuga. A cena bonita é um exemplo inconfundível da rotina morta que temos prazer em repetir.

Mesa-redonda e lançamento de livros na Prática da Crítica na MITsp 2016

Foto de Caio Nigro.
Foto de Caio Nigro.

A Documenta Cena – Plataforma de Crítica realizou uma ação denominada Prática da Crítica na MITsp 2016 e produziu diariamente, ao longo da mostra, críticas sobre os espetáculos para veiculação impressa e eletrônica. Além disso, o grupo participou da mesa-redonda Recepção e Crítica, com Edélcio Mostaço, Daniele Avila Small, Kil Abreu e Patrick Pessoa, mediação de Luciana Romagnolli, no dia 7 de março das 14h às 16h30. Houve lançamento dos seguintes livros:

O Crítico Ignorante: uma negociação teórica meio complicada (7 Letras), de Daniele Avila Small

Soma e Sub-tração – territorialidades e recepção teatral (Edusp), de Edélcio Mostaço

Para Alimentar o Desejo de Teatro, de Maria Lúcia Pupo (Hucitec)

As atividades foram realizdas no Itaú Cultural.

 

Foto: Caio Nigro.

 

O jogo democrático e suas contradições

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ça Ira, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MIT 2016

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

Publicado no site da MITsp em 5 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/o-jogo-democratico-e-suas-contradicoes/

Plataforma de Crítica