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Os corpos convictos e a batalha contra o cansaço

Crítica do espetáculo Ça ira, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/ DocumentaCena)

MIT 2016

 

Não foi uma experiência simples assistir à peça Ça ira, de Joël Pommerat no dia 4 de março de 2016, enquanto o Brasil passa por um processo acachapante de produção e manipulação de discursos com vistas à condução da opinião pública a um retrocesso de dimensões trágicas. Não foi uma experiência simples ouvir as declarações dos representantes do clero, tendo em mente os discursos da bancada evangélica, conhecendo o vínculo da igreja católica com a ditadura militar que um segmento da imprensa (!) quer restituir. Não foi uma experiência simples ouvir os representantes da nobreza, tendo em vista que o núcleo duro das polaridades políticas do Brasil atual se resume ao ódio que a classe média e que a classe alta têm da pobreza. Os nervos políticos do Brasil estão expostos. Por um lado, podemos comemorar a atualidade de Ça ira e a relevância de assistirmos a essa peça nesta semana sensível. Por outro, é triste dar-se conta (embora já saibamos) que o nível da discussão política que vemos na TV é pré-Revolução Francesa.

Mas, embora o calor da hora chame para a discussão extracena, os aspectos formais da encenação também convocam o senso crítico. A encenação nos coloca, a nós, espectadores, em diferentes estruturas. Em alguns momentos, estamos diante de cenas fechadas em si, que se não me engano são aquelas em que o rei está em seu ambiente familiar. Em outros, somos os destinatários de discursos prontos, a palavra nos é endereçada diretamente. Mas, na maior parte do tempo, estamos no olho do furacão, dentro do espaço de assembleia. Essa estratégia de encenação nos proporciona variações de estados emocionais, fisicamente muito concretos. E essa oscilação de estados me parece ser um efeito pertinente sobre nós espectadores, porque reflete as condições em que nós cidadãos nos vemos diante de impasses que não sabemos ou não temos como resolver.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Em alguns momentos, sentimos que não fazemos parte da discussão pública, que nossa participação é dispensável, que a quarta parede do teatro é a quarta parede dos grandes poderes. Em outros, sabemos que não somos interlocutores reais dos discursos que são cinicamente endereçados a nós – e isso pode nos alienar ainda mais que a quarta parede. Mas, nos momentos de assembleia, a política nos anima, nos faz querer gritar junto, vaiar, aplaudir. A teatralidade da assembleia chama atenção para a teatralidade do teatro. Não somos instigados a nos engajar em movimentos e deslocamentos literais, mas a teatralidade da assembleia nos dá consciência da nossa postura na cadeira do teatro, especialmente quando os corpos convictos à nossa volta ressoam na intensidade dos nossos batimentos cardíacos.

A dramaturgia nos deixa especialmente atentos quando coloca em debate falas que não se organizam de maneira maniqueísta, quando algo nos surpreende negativamente dentro de um discurso com o qual já estávamos concordando animadamente, ou quando vislumbramos uma centelha de razão em um discurso do qual já discordávamos a priori. É complexa a forma como Luís XVI é apresentado. Sabemos que sua cabeça vai cair, esperamos até ansiosamente por esse momento. Mas a força simbólica da monarquia na mente dos revolucionários é algo que nós, brasileiros do século XXI, não conseguimos vislumbrar muito bem. Ou conseguimos?… Além disso, é significativo que a peça não chegue ao relato da decapitação do rei. Há indícios de tragicidade nesse personagem que é Luís XVI e na narrativa que se põe em Ça ira, mas não há catarse. Os impasses não se resolvem. Voltamos para casa com a imagem do rei ainda com a cabeça acima dos ombros. E em determinado momento, deve ter passado pela cabeça de alguns que estar no teatro enquanto um circo midiático se erige lá fora pode ser tão angustiante quanto estar em uma assembleia pensando o direito dos homens enquanto o sangue corre pelas ruas.

A duração do espetáculo também atua sobre nossos corpos, mentes e afetos. A extensão é elemento da dramaturgia porque atua concretamente sobre os estados do espectador, age sobre suas resistências, derrubando algumas e erigindo outras. Cinco horas em língua estrangeira não é “para os fracos”. Mas devemos nos lembrar que a política também é, em larga medida, língua estrangeira. E o cansaço é uma das estratégias mais eficazes dos grandes projetos de manobras escusas – como o que estamos presenciando agora. A exaustão intelectual e física ao final do espetáculo espelha o nosso profundo cansaço com a politicagem daqueles que fazem da política um negócio lucrativo.

Um dos pactos do teatro é ficar até o fim. Estejamos despertos então.

 

O jogo democrático e suas contradições

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ça Ira, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MIT 2016

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

Publicado no site da MITsp em 5 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/o-jogo-democratico-e-suas-contradicoes/

Das narrativas no teatro e das narrativas do teatro

Crítica do espetáculo Cinderela, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/DocumentaCena)

MIT 2016

 

Voltar-se sobre si mesmo é procedimento comum ao teatro. Os grandes clássicos, que formam o teatro, são sempre revisitados pelos artistas – dos mais tradicionais aos que trabalham para inventar novas formas. Em certos casos, o que motiva os artistas é a ideia de inserir-se na história do teatro com um desempenho memorável de um grande papel ou com uma encenação eficaz. Nesses casos, o resultado costuma ser o do simples acúmulo. No entanto, em outros casos – mais raros -, a montagem de um clássico se dá porque alguém tem uma hipótese sobre aquela narrativa, um olhar que não apenas continua, mas que reinsere aquele texto no mundo e que faz o teatro encontrar a si mesmo na sua história, costurando uns fios no seu tempo.

Recontar as narrativas é procedimento comum ao ser humano. As grandes histórias, que nos formam, são perpetuadas pelo teatro, pelo cinema e pela literatura. E, no caso dos contos infantis, elas também são repassadas pela transmissão oral, que infiltra nas crianças, com as narrativas, estruturas de pensamento e de sentimento – muitas das quais, a duras penas, mais tarde vamos tentar nos livrar.

Considerando a montagem de Joël Pommerat, recontar Cinderela não é repetir Cinderela. Diante do espetáculo, cabe a nós espectadores nos perguntarmos que hipóteses tem o espetáculo sobre essa narrativa. E que hipóteses podemos formular a partir do que vimos. Podemos nos perguntar, por exemplo, que estruturas profundas identificamos na Cinderela que temos em mente e como estas estruturas são ou não são desconstruídas na peça.

A Cinderela padrão é uma personagem sem complexidade, porque sem foro íntimo, que passa da infelicidade à felicidade por fatores externos e por uma ideia cristã de merecimento, sob a qual quem sofre e é humilde em algum momento vai ser recompensado e feliz. A mensagem para as meninas é: fique em casa, faça o trabalho doméstico, ature a família, mesmo que não tenha por ela qualquer sensação de pertencimento, porque, um dia, um fator externo vai acontecer e a relação com um homem vai trazer felicidade. Além disso, todas as mulheres do mundo (a fada não é do mundo) ou te abandonam ou querem o seu mal.

A Cinderela de Pommerat tem interioridade: um passado e um sentido (mesmo que torto e fruto de um mal-entendido). As provações a que se submete são, em larga medida, autoinfligidas: ela é corresponsável por suas mazelas. O fator externo mágico é uma falácia: a fada não funciona como fada, mas como amiga. Ou seja, o que vem tirar Cinderela da confusão mental e do autoconfinamento é a amizade entre mulheres. O homem que ela vai amar é tão perdido e tem tantas neuroses e traumas quanto ela e, por mais legal que seja a relação que eles vão ter, este não é o telos, a finalidade, das suas vidas.

As subversões na trama, como o chiste com o sapato, a postura meio blasé da menina, a cena do grande momento entre o casal, em que eles estão dançando sozinhos-juntos e não fundidos no élan de um beijo romântico de novela, cada um desses aspectos poderia ser desdobrado em ótimas discussões. O autoengano da madrasta, por exemplo, que é tão cômico em um primeiro momento, mas tão triste e tão comovente com o desenrolar da situação, mereceria uma análise à parte. O trabalho de cada ator, o engenho dos elementos de cena e as operações dramatúrgicas do autor-encenador também poderiam ser destacadas e desenvolvidas em uma crítica feita com mais tempo e mais espaço. Mas todo o trabalho formal da construção do espetáculo converge para as questões estruturais e temáticas da narrativa e nos faz pensar sobre os seus temas.

O pulo do gato está justamente no fato novo da fábula: o efeito das palavras da mãe em seu leito de morte.

Por um lado, somos todos (meninos e meninas) assombrados pelas palavras de nossos pais. Com isso, a peça desliza do mito feminino que nos persegue para os terrores da infância que sobrevivem na mente adulta. Mas, para além disso, a fábula é toda calcada na falha da escuta, no mal-entendido, no sentido de mal-ouvido. A passagem da infelicidade para a felicidade de Cinderela de Pommerat vai do não saber escutar o outro ao ser capaz de escutar, finalmente, o outro.

O teatro não é simplesmente para se ver, mas também e principalmente para se escutar – é na relação entre fala e escuta que está sua origem mais arcaica. Assim, faz sentido que, por mais que a visualidade espetacular norteie muitas criações contemporâneas, a narrativa sempre bate o pé na porta para encontrar o seu lugar. É sintomático da atualidade da programação da MITsp que essa terceira edição se abra com espetáculo tão exemplar da força mítica, ancestral e telúrica da reinvenção da narrativa no teatro.

 

 

Arquivo e a capacidade de se colocar no lugar do outro

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.
Crítica a partir do espetáculo Arquivo, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)MITsp 2015

Segundo a filosofia budista, a capacidade de se colocar no lugar do outro e compartilhar seu sofrimento é uma das funções mais importantes da inteligência humana. Pois é a esse exercício que se propõe o bailarino e coreógrafo israelense Arkadi Zaides no espetáculo Arquivo, de 2014. Habitante da próspera Tel Aviv, cidade situada a apenas 20km da Cisjordânia, o coreógrafo compartilha com o público uma complexa partitura audiovisual, corporal e vocal criada a partir de uma observação minuciosa da realidade da fronteira e, sobretudo, dos corpos que habitam aquela realidade social – os quais são trazidos ao palco no próprio corpo do bailarino.

Talvez como forma de dar a ver essa complexidade, Zaides opta por uma encenação não-espetacularizada, na qual importantes aspectos do contexto de criação são revelados ao público logo no início da apresentação. A partir de procedimentos comuns ao teatro documentário, o artista nos informa, sem rodeios, que as imagens exibidas no telão foram filmadas por moradores palestinos e trazem, nesse sentido, somente cidadãos israelenses como ele. Se não há palestinos nas imagens, é pelo olhar deles que testemunhamos, assim como o próprio artista, as diferentes fisionomias – e corporalidades – da disputa pelo território da Cisjordânia. É com olhos de palestinos, portanto, que testemunhamos o mundo ao longo de pouco mais de uma hora.

Trabalho de grande força documental, vinculado à produção audiovisual do Projeto Câmara de B’Tselem (um centro de informações israelenses pelos direitos humanos nos territórios ocupados), Arquivo nos permite acessar, em detalhe, aspectos pouco conhecidos de um universo quase sempre visto à distância. Instantaneamente imersos em uma realidade na qual vida e guerra se misturam, percebemos que também crianças e adolescentes estão envolvidos no conflito, experimentando desde cedo um contexto em que o outro é visto e tratado como adversário, a despeito das semelhanças entre as condições de vida daqueles que, em meio à fronteira, se atacam e se defendem.

Ataque, defesa e observação, aliás, são três estados sucessivamente experimentados pelo coreógrafo, a partir de mimesis corporais que estabelecem diálogos mais ou menos diretos com o material exibido no vídeo. Enquanto alguns gestos e posições corporais estabelecem relações imediatas com o que vemos na tela, outras surgem no palco antes de terem revelados seus contextos de referência, deixando ao público a responsabilidade de lhes atribuir significado e memória. Aos poucos, contudo, vamos nos familiarizando com o “arquivo” gestual de Zaides, e as ações realizadas no palco, mesmo quando desvinculadas do vídeo ou quando o vídeo se faz ausente, passam a nos trazer memórias, significados e imagens sociais.

Se, de início, o próprio Zaides, como morador de Tel Aviv, parece observar de longe aquele contexto de vida, aos poucos tanto ele quanto nós nos aproximamos das disputas entre colonos israelenses e palestinos. De meras testemunhas do espetáculo, passamos, com o tempo, a fazer parte dele, como fica evidente nos momentos em que somos observados por personagens do vídeo e quando o próprio Zaides, em desdobramentos coreográficos de gestos do duro cotidiano que nos apresenta, repetidamente avança em direção ao público, com passos firmes e olhar aguerrido. Experimentamos, ali, o lugar do outro, já imersos em conflitos que – por que não? – também são nossos.

Bastante presente no espetáculo, a repetição de gestos e imagens tem marcantes efeitos sobre a obra e o público. De um lado, é a partir da repetição que gestos cotidianos são convertidos em coreografias, e estas vez ou outra incluem saltos e giros que em algo lembram movimentos da dança clássica. De outro, também é a repetição – de gestos e vozes, vale ressaltar – que nos atenta à escala e à persistência do conflito.

Em síntese, Arquivo nos propõe uma experiência de imersão na violenta rotina de pessoas que não conhecemos e que, em cena, se constituem como outro. Não por representarem outras etnias, nacionalidades ou religiões, mas por, de modo semelhante a muitos brasileiros, não terem seus direitos humanos assegurados e viverem em permanente estado de exceção.

Publicado no site da MITsp em 12 de março de 2015.

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/12/Arquivo-e-a-capacidade-de-se-colocar-no-lugar-do-outro

Woyzeck e seus planos de fuga

Foto: Ligia Jardim
Foto: Ligia Jardim

Crítica a partir do espetáculo Woyzeck, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MITsp 2015

Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.

 Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.

 Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.

 Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.

 Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.

A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.

“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.

Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.

Publicado no site da MITsp em 8 de março de 2015:

http://mitsp2015.wixsite.com/mitsp/single-post/2015/03/08/Woyzeck-e-seus-planos-de-fuga

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Espaços para desconfiar do discurso

Crítica de Escola, de Guillermo Calderón, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

16 de março de 2014

Até o torturador cria para si histórias que o convençam de que faz o bem. Dita quase com essas palavras em Escola, tal frase é indício da perspectiva complexa com a qual o diretor Guillermo Calderón aborda temas políticos em espetáculos como Villa+Discurso, apresentado no Brasil em 2011 e 2012, e este Escola que ora traz à MITsp. É preciso desconfiar dos discursos. Deles escapam contradições, que revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção.

Em Villa, tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução.

Parece ser dessa descrença no consenso que Calderón parte em Escola. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra agora nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente.

Personagens com os rostos ocultos por capuzes recebem ensinamentos para ir à luta armada contra o regime ditatorial nos anos 1980. Aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto sofre das limitações comuns à aprendizagem na escola: a veiculação de um discurso quase catequizante, do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. A escola surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar.

O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo e trabalha com concepções brechtianas livremente recriadas pelo encenador chileno. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos. A defesa de uma forma de organização popular que faça uso da violência para instaurar um novo estado social, por exemplo, esbarra no baixo nível de formação política desses militantes, que pontualmente manifestam ingenuidades e contradições. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas frente à descrição do funcionamento do revolver e do explosivo. A encenação realista, em espaço diminuto e cenografia econômica, atesta ainda certa ética da representação praticada por Calderón, que se esquiva à espetacularização.

Em sua exposição de uma célula de resistência popular, Escola ganha um caráter de urgência pelo diálogo com o contexto atual da América Latina, no contraponto de um passado ditatorial com as manifestações de descontentamento político do presente. A formação política deficiente, aliás, é um dos inúmeros pontos de aproximação possível do espetáculo com os protestos iniciados em junho passado no Brasil. Outro é o questionamento em relação à ditadura ter cedido a um governo falsamente democrático, que ainda operaria sob princípios autoritários e interesses alheios à população.

Calderón dispõe um lugar especial ao espectador: o de um encontro com uma ou mais visões de mundo que não tentem convencê-lo – posto que o convencimento seria um autoritarismo – mas demandem dele o assumir de uma postura. Essa operação se torna mais potente na medida em que a dramaturgia contempla um endereçamento ao futuro, ao pressupor que aquele momento político decisivo para o Chile seria retomado adiante e que a luta popular tem o exemplo de erros e acertos de um passado não muito distante.

Pão e tinta

Crítica da peça Gólgota Picnic, de Rodrigo García

MITsp 2014

 

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

 

Uma mulher (não) é uma mulher

Crítica de Eu Não Sou Bonita, de Angélica Liddell, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

MITsp 2014

14 de março de 2014

A performer espanhola Angélica Liddell habita o palco carregada de memórias e simbologias em Eu não sou bonita. O espetáculo foi criado sobre material autobiográfico, a partir do qual ela elabora uma poética da agressão. Desde uma perspectiva íntima compartilhada, a artista cria um espaço extracotidiano de expressão verbal e corporal contra a violência de gênero. Assume uma postura de enfrentamento da construção cultural do ser mulher, que limita a experiência do feminino, denunciando violências simbólicas e físicas castradoras do desejo e da liberdade.

A afirmação-título de recusa à beleza surge como negação ao imperativo da submissão ao olhar masculino como legitimador. Angélica coloca o público diante da escuridão do trauma. Em sua poética, o erotismo é um elemento essencialmente gerador de mal-estar, tanto quanto a violência autoinfligida e a direcionada ao homem, discursivamente.

É justamente no campo discursivo que Liddell mais abertamente depõe sobre uma condição feminina enfraquecida. A corporeidade é desempoderada seguindo uma concepção binária de mente/corpo, associada ao macho/fêmea, com desprestígio para os segundos termos constituidores dos pares. Os corpos femininos, nesse tecido cultural, carregam distintos tipos de controle – a anulação da presença física; a reificação; a repressão disciplinadora; e a escravidão ao padrão estético dominante são alguns dos apontados pela pesquisadora Elódia Xavier, em Que Corpo É Esse?.

E que corpo é esse que Liddell performa? Ela faz-se presente como um corpo violento, que urra, berra, corta-se, queima-se. Seu corpo é palco da contestação sociocultural. Feito objeto pelo gesto violento do outro, responde como sujeito e objeto de sua própria violência, desfazendo a dicotomia. A presença de um cavalo em cena, mais do que um elemento biográfico e de irrupção do real, traz o contraponto de uma natureza supostamente ingênua e alheia a condicionamentos culturais.  Natureza e cultura: outro binômio a explodir.

O mal-estar maior gerado pelo espetáculo, contudo, está no aprisionamento do corpo feminino à incessante restauração do trauma vivido. O lugar de onde Liddell fala é o da vitimização masoquista (portadora de uma camada de prazer) e do ódio (que implica um bloqueio da alteridade). Um lugar de impotência. Mas qual outro lugar de empoderamento seria possível? Se no campo discursivo a vitimização e o ódio impõem um limite, na dimensão da produção de presença outras afetações se instalam. Há, sem dúvida, uma potência sensível na presença de Liddell que produz um desenho de forças de intensidades variáveis. Contudo, a intervenção de ativistas pró-animais na sessão de estreia na MITsp interrompeu o fluxo dessas forças.

Ainda assim, ao resistir a uma apreensão totalizadora (cuja força continua atuando sobre o espectador tempos depois da fruição, como um cavalo indomado), a experiência do paroxismo da vitimização e do discurso do ódio, em tensão com a materialidade daquele corpo, proporcionada pelo espetáculo, lega ao espectador um saturamento radical do imaginário, que acena para a impossibilidade da manutenção desse status quo. Este é um mal-estar que o espectador pode abafar, restaurando o conforto, ou deixar que lhe tome o corpo de modo que se lance ao enfrentamento da falta de saídas com que a própria Liddell aprisiona seu discurso, para a criação de outros possíveis ao ser feminino.

E ao ser masculino. O aprisionamento cultural do ser homem é algo ao qual o discurso de Liddell não alude. Mas, justamente por sua cegueira, apela ao espectador que reaja. O ato performático, por sua característica de restauração do comportamento, serve ao trauma. Mas também é saber privilegiado da explosão das dicotomias. E só na explosão da dicotomia há liberdade.

Sem fígado e sem fogo

Crítica da peça Anti-Prometeu, de Şahika Tekand

MITsp 2014

 

Em Anti-Prometeu, espetáculo da encenadora Şahika Tekand, da Turquia, os atores se movimentam e falam alternada e simultaneamente, obedecendo a uma gramática regida pelos comandos de som e pela dinâmica do dispositivo cenográfico, uma espécie de tabuleiro de luz. Dividida em três partes, a dramaturgia apresenta diferentes momentos da lida destes jogadores-peões com as demandas impostas por estímulos externos. Em um ritmo vertiginoso, o jogo ganha cada vez mais intensidade, desafiando a prontidão dos corpos na cena e das mentes na plateia.

Como em qualquer jogo, as metas e regras fazem parte de um pacto estabelecido entre as partes. O que há de trágico no homem contemporâneo, como apresentado no espetáculo, é a impossibilidade de rever os termos do pacto: a cada jogada, ele faz o que pode. O ritmo da vida urbana atual não abre espaço para o questionamento das regras, muito menos para uma revisão das metas.

Foto: Marlon Marinho.
Foto: Marlon Marinho.

Uma questão interessante a ser pensada do ponto de vista da poética da cena é que o estatuto do texto também é parte do jogo. Na segunda parte, os atores começam a responder com movimentos combinados a estímulos sonoros específicos. Por exemplo: quando os participantes que ficam na mesa de som ao fundo do palco dizem “um”, o ator que está em um quadrado iluminado fica de pé; quando o comando é “dois”, ele se vira para a direita; quando é “três”, ele apoia um joelho no chão. São cerca de dez comandos sonoros que fazem cada ator deitar, ajoelhar, levantar e virar freneticamente. (O fato de estes participantes que emitem comandos estarem em um patamar mais elevado evidencia a verticalidade da relação hierárquica.) Quando se acende o quadrado de luz sobre o qual o ator está, ele deve começar a falar, ao mesmo tempo em que obedece à movimentação. Assim a fala é articulada como movimento, como uma tarefa física, não apenas como instrumento para a expressão de um discurso. A verbalização é um esforço a mais no virtuosismo das atuações.

No entanto, o conteúdo da fala não é aleatório nem vazio; talvez seja até ilustrativo, na medida em que os atores comentam sua condição. Se não me engano, há em algum momento uma referência a Io (personagem da mitologia grega que enfrentou uma longa jornada de esforços e provações para reaver sua condição humana). Diante desse ponto, faz-se necessário pensar a legenda, um elemento que não faz parte do espetáculo na sua criação original, mas que passa a ser uma questão estética na situação de apresentação em um país de outra língua. A relação com o texto legendado é completamente diferente, porque exige do espectador um movimento que pode ser cansativo a ponto de levar a desistência. Se ele desiste da legenda, o texto passa a ser apenas uma consequência do movimento da fala, formando uma paisagem sonora abstrata – que não deixa de ter a sua graça.

A presença da legenda também exclui a possibilidade do espectador acreditar que, em alguma medida, o jogo acontece ao vivo, que os atores estão respondendo a comandos no calor da hora. A fala também poderia parecer fragmentada pelo jogo físico, mas a legenda revela que sua intermitência é prevista e ensaiada. Enfim, a legenda evidencia o fato de que se trata da representação de um jogo, não do acontecimento de um jogo performativo de fato.

Do ponto de vista temático, a peça nos lembra o quanto nossa vida cotidiana pode ser parecida com a situação daqueles corpos que apenas respondem a estímulos, agarrados às suas cadeiras-rochas. Como Prometeu, oferecemos nosso fígado aos abutres todos os dias. Mas sem ter feito nada parecido com apresentar o fogo à humanidade.