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Equilíbrio delicado

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir do espetáculo Nós somos semelhantes a esses sapos + Ali, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?

MITsp 2014

26 de março de 2014

Fazer metacrítica de um espetáculo nos coloca numa situação estranha, mas desafiadora. Buscar o sentido ampliado, com o reforço de outras vozes. Encontrar outros caminhos e uma dicção mais original de um trabalho visto há alguns dias. E, no caso de uma obra dentro da programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (realizada entre 8 e 16 de março na capital paulista), com os acréscimos de camadas sensoriais e interpretativas de outras montagens, conversas com pares e ímpares, palestras, outras visões. Além do fator tempo. Estar distanciado do momento da expectação não significa necessariamente uma vantagem. E sim uma dubiedade. Mas com o olhar é deslocado. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali foram apresentados na Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo – CCSP, em sessões lotadas e recepção calorosa do público.

Utilizei de vários sentidos de deslocamento como chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que exibiu em seguida o duo Ali. Das andanças pelo palco – Hedi Thabet, Artemis Stavridi e Mathurin Bolze -, do reposicionamento do eixo gravitacional e das referências aos movimentos migratórios mundiais e suas questões de identidades. Mas o deslocamento mais importante se opera no vocabulário dos movimentos alimentados pelas acrobacias circenses, que se descolam de outras bases da dança contemporânea para criar sua singularidade.

O trabalho também processa uma transformação na percepção do que é apontado como normalidade. “Nós somos semelhantes a esses sapos…” + Ali, não se resumem a um tratado sobre a deficiência física ou sua “exploração espetacular”. Hedi Thabet (dançarino e artista de circo belga que teve a perna amputada) disse, na conversa com o público após a segunda récita, que a peça “Nós somos…” é  “jogo de situações dramáticas sobre o amor”.

Em “Nós somos…”, a triangulação do desejo começa com movimentos repetidos mecanicamente, do casal que anda em círculos pelo palco. A noiva de camisola, o noivo de camisa branca, calça e paletó pretos. A terceira figura desse trio entra para desestabilizar o idílio amoroso dual, o homem de muletas.

O título do espetáculo é um verso do poeta René Char (1907-1988), “Nous sommes pareils à ces crapauds qui dans l’austère nuit des marais s’appellent et ne se voient pas, ployant à leur cri d’amour toute la fatalité de l’univers” (Nós somos como esses sapos nos pântanos que na noite austera se comunicam e não se veem, dobrando em seus gritos de amor toda fatalidade do universo).

Esses corpos carregam possibilidade erótica, enquanto instância também de poder. E extrapolam fronteiras com subversões poéticas. Estar no mundo é repleto de ironias, em questionamento de ser inteiro, pleno e fragmentado e incompleto. O que falta. Mas a imagem da mutilação não se apresenta como obstáculo, mas sim potência.

É a partir dessa ausência, porém, que se estabelecem os jogos de multiplicação e mutação dos corpos. Nessa reinvenção e reconfiguração corporal, são compostas formas humanas e supra-humanas, mitológicas, animalescas, em que os corpos se reorganizam, se fundem, se redefinem.

Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos exacerbando a dança contemporânea, “Nós somos…” constrói um vocabulário de movimentos que busca confrontar a gravidade e reelaborar a noção de equilíbrio.

A música é executada ao vivo por quatro instrumentistas oriundos da Grécia e da Tunísia. Eles tiram texturas sonoras que aquecem, ganham formas e sabor ou estão carregadas de melancolia. A trilha salienta passagens mais passionais, com canções da tradição rebetiko e o som folclórico do Oriente.

O discurso amoroso também está presente em Ali, mas o registro é da ordem do fraterno.  A falta exposta se apresenta como elemento organizador da coreografia. A amizade articula os jogos, armados e desarmados entre os dois homens. Vai da ludicidade das brincadeiras infantis à disputa pelo poder como energia vital. Em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois bailarinos. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente.

Deslocamentos e ironias vitais

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica a partir do espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), e do duo Ali, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

12 de março de 2014

Um casal de noivos entra e dá uma volta em círculo no palco. Do lado direito, um grupo de músicos. Na segunda volta, ele coloca a mão no ombro dela e fala algo ao seu ouvido. Depois parece bêbado (da festa?). Mudam de posição, de ritmo. Outro homem com perna amputada e com muletas vai atrás. O barulho metálico das muletas grita. Depois de uma volta, ele pisa no vestido da noiva e congela. Continua o percurso. Pisa novamente no vestido dela e paralisa a cena, como numa fotografia. O homem das muletas chuta a mulher. Ela cai. E depois se agarra ao pescoço dele. É arrastada. Tenta se segurar a outras partes do corpo dele. Ele pula como sapo. Ela sobe no seu ombro.

Lembrei-me da canção O Quereres, de Caetano Veloso (“Ah! Bruta flor do querer / Ah! Bruta flor, bruta flor”). Esses desejos que se alternam, esses quereres em permanente deslocamento. Deslocamento, aliás, é uma chave de leitura para o espetáculo “Nós somos semelhantes a esses sapos…”, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que apresentou em seguida o duo Ali.

As andanças pelo palco, em círculos primeiramente e em muitos outros desenhos. O deslocamento do eixo gravitacional provocado pela falta de uma perna de Hedi Thabet e que se expande para os outros dois bailarinos. A provocação do deslocamento do olhar do espectador. E ainda a projeção dos deslocamentos migratórios mundiais e suas questões de identidades, também ressaltadas pelo repertório musical (melodias tradicionais tunisianas e gregas – rebetiko) e a ascendência dos artistas.

O corpo mutilado vai à luta. Subverte lógicas. Desafia o outro. A linguagem física é rica de significações. Alteridade: um e outro no fluxo do desejo por uma mesma mulher, alternância equilíbrio/desequilíbrio dos corpos, desafio às leis da gravidade. Acrobacias de tirar o fôlego. Esses “sapos” borram fronteiras. Saem dos eixos em seus giros. Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos e de dança contemporânea, “Nós somos…” explora a aventura de um triângulo amoroso plausível, que avança em oposições contraditórias no deslocamento do desejo.

Já em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois homens. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente. E o humor e a ironia permeiam os dois espetáculos. Mais grave em “Nós somos semelhantes…”, com suas ameaças de perda e mais vitalizante em Ali, com sua força e alegria de viver.