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Nomeando Jacy

Crítica de Jacy, peça do Grupo Carmin

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

Quase nada é muita coisa

Crítica da peça Muito barulho por quase nada, do Grupo Clowns de Shakespeare

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Abrindo os trabalhos da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, realizada pela Cooperativa Paulista de Teatro, a peça Muito barulho por quase nada, com o Grupo Clowns de Shakespeare, foi apresentada no Centro Cultural São Paulo. Com direção de Fernando Yamamoto e Eduardo Moreira e elenco formado por Camille Carvalho, Dudu Galvão, João Ricardo Aguiar, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz e Renata Kaiser, o grupo coloca em cena sua leitura da peça de Shakespeare, um trabalho de tradução no sentido amplo.

Fiel à narrativa e ao tom, a adaptação proposta se beneficia de cortes de trechos falados, bem como de alguns personagens e situações, para oferecer uma versão própria do extenso material dramatúrgico original. Tradução, adaptação, versão, leitura, encenação: do que se trata? Poderíamos estabelecer definições diferenciadas para cada uma dessas situações, do ponto de vista técnico, mas o que me parece interessante nesse trabalho do Clowns, no que diz respeito a uma análise crítica, é o trabalho de apropriação de um conteúdo canônico com uma consequente criação original.

Foto: Rafael Telles.
Foto: Rafael Telles.

De modo geral, é possível dizer que toda peça que se constitui pela montagem de um texto pré-existente tem a sua medida de tradução. O trabalho de encenação pode ser pensado como um trabalho de tradução – de linguagens, não necessariamente de línguas. E textos canônicos de teatro demandam novas encenações na mesma medida em que textos canônicos de literatura demandam novas traduções. Mas nem toda encenação – assim como nem toda tradução – dá o pulo do gato: apropriar-se ao ponto de ser um outro original. A proposta desse texto é tentar ver a montagem em questão nesse caminho.

O “quase” inserido no título conhecido em português (Muito barulho por nada) dá a dica de que há algum desvio. E esse algum desvio pode sinalizar o lugar de descolamento do cânone – que é justamente o salto de infidelidade que faz a volta, que faz a tradução/adaptação/encenação ser fiel justamente por sua relação de independência. E esse salto só é viável porque há um respaldo de pesquisa e de conhecimento prático, de familiaridade com o legado shakespeareano que, não à toa, nomeia o grupo. No que diz respeito à originalidade, é visível que o grupo tem uma linguagem própria na qual pode inscrever a sua dramaturgia: o chão a partir do qual é possível levantar voo.

O que vemos e ouvimos neste Muito barulho por quase nada é um Shakespeare popular, com espaço para as idiossincrasias dos artistas criadores e referências sutis ao momento da apresentação, uma encenação que finca suas bases na comunicabilidade imediata entre ator e espectador, contando com o lirismo e a descontração dos números musicais. Eles estão à vontade, como se Shakespeare não fosse um autor canônico, mas um lugar que eles frequentam, ou a cidade onde nasceram. São os clowns – ou clóvnis – que moram em Shakespeare, ou que vieram de lá.