Arquivo da tag: Paula González Seguel

Presença e oralidade na escrita da história

Crítica da peça Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O trabalho apresentado pelo Teatro Kimen, do Chile, oferece questões que têm me interessado particularmente – e não somente a mim, pelo que posso perceber, principalmente pelas pesquisas cênicas e teóricas de pesquisadores em São Paulo: as interferências do real na cena. Mas o que mais me desperta o interesse é ainda o outro lado da moeda: as interferências da criação artística na percepção do real, ou mais especificamente, como o teatro documentário, em suas diversas e muito variadas possibilidades criativas, nos apresenta uma possibilidade interessante de escrita da história ou de articulação de um outro saber histórico. Este outro saber histórico não é aquele de nomes e datas, nem o das grandes narrativas de impérios, conquistas, independências, nações, guerras mundiais e lutas de classes. Trata-se de um saber que vem do compartilhamento de experiências que não decorrem de simples histórias pessoais, mas de vivências de seres humanos que se inscrevem em um contexto mais amplo, que podem nos fazer vislumbrar situações políticas, econômicas, sociais e históricas, a partir de pontos de vistas que um livro ou um filme simplesmente não dão conta.

Se fosse o caso de me estender no assunto, recorreria às proposições teóricas do pesquisador argentino Jorge Dubatti sobre a ideia de convívio no teatro, que estabelece uma diferença nuclear na experiência da recepção teatral. Acredito que a natureza da “transmissão” de um saber histórico numa situação de convívio proporciona uma apreensão de natureza diferente. Mas, como a proposta desta crítica é colocar, em um intervalo curto de espaço e de tempo, algum recorte possível, vou me deter em outra mirada – que está também fundamentada no acontecimento teatral como uma situação de compartilhamento do espaço e de uma co-presença de todos os envolvidos, artistas e espectadores.

Foto: Danilo Espinoza Guerra.
Foto: Danilo Espinoza Guerra.

Arrisco dizer que uma possível tendência do teatro documentário contemporâneo feito na América Latina é a presença do corpo como evidência, como documento, vestígio de uma realidade que não está mais literalmente no presente, mas cujos rastros se pode vislumbrar nestes corpos que trazem em si, na pele, no sangue, na língua, o saber histórico vivido. Galvarino pode ser considerado um exemplo dessa prática. A atriz Paula González Seguel, que também é diretora da peça, assume a voz de sua tia na vida real, Marisol Ancamil, a irmã do personagem ausente que dá título à peça. Galvarino fora estudar e trabalhar na Rússia e seu desaparecimento motivou a criação do espetáculo. Mas não foi só o desaparecimento do irmão que causou a angústia da família: o descaso das autoridades chilenas, que poderiam ter colaborado para localizá-lo antes de sua morte, causada por um ataque xenofóbico, é o que dá o tom de denúncia e amplia o espectro de relevância política do espetáculo.

Paula Gonzalez traz no corpo o sangue da família que implora pelos restos mortais do parente perdido. Soma-se a isso a presença do casal mapuche no papel dos pais. Eles não são atores, não estão ali para cumprir mais uma etapa de suas carreiras. Estão ali como pessoas cujos corpos carregam uma cultura, evidenciada nos breves diálogos, em que falam a língua original dos mapuche. A oralidade também é uma questão a ser pensada nesta breve tentativa de levantar possibilidades de uma escrita da história no teatro documentário, aspecto que aparece no espetáculo quando Paula lê as cartas enviadas ao Ministro das Relações Exteriores e que ganha corpo quando ela se dirige a ele falando diretamente ao público presente. A canção que Elsa Quinchaleo nos oferece é mais um sinal dessa força de presença que nos dá a ver não apenas uma história real, ou uma história familiar, mas nos permite conhecer uma face singular da história do Chile. Estaríamos, com essa noção de teatro documentário, escrevendo (com Walter Benjamim) uma história a contrapelo?

Essa dor não é somente da família de Galvarino

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Crítica do espetáculo Galvarino, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?)

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

3 de agosto de 2014

O espetáculo Galvarino é carne viva. De lembranças e vácuos de informação, e de indignação de uma pequena família chilena, de etnia mapuche, pelo descaso político do governo. Gente pobre e anônima é vítima da omissão e arrogância dos poderosos em todo mundo. Mas nesse caso, o teatro dá uma dimensão universal ao drama familiar. Galvarino Ancamil, que dá título à peça fez um exílio voluntário na época do golpe de Estado no Chile e vivia na Rússia desde o início dos anos 1970.

Trocava poucas cartas com a família, mas quando a correspondência cessou – depois da derrocada do comunismo, a irmã Marisol Ancamil pediu ajuda ao Ministério das Relações Exteriores do governo chileno para localizar o irmão. Silêncio das autoridades e insistência da personagem.

Ficamos sabendo depois que um grupo de neonazistas exterminou o chileno de origem indígena, nas cercanias de Moscou, em 1993.

É sobre essa ausência que fala a montagem da Compañia Teatro Kimen, de Santiago.

A diretora do espetáculo, Paula González Seguel (sobrinha de Marisol Ancamil,) é quem interpreta a irmã de Galvarino.

Com Galvarino, Paula fecha uma trilogia de “teatro documental”. Antes, ela dirigiu Ni pu tremem – Mis antepassados (2008) e Território descuajado – Testimonio de um pais mestizo (2010).

O teórico Patrice Pavis define Teatro Documentário como “Teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo”

O espetáculo do grupo Kimen faz parte de uma corrente, não necessariamente ordenada, de um teatro anti-mainstream. É um um teatro militante a partir de drama pessoal. De caráter politizado, de denúncia.

Galvarino conta uma história a partir de uma micro-perspectiva privada. Borra barreiras entre realidade e ficção. E ao revisitar o episódio da história de sua família no palco, a encenadora e atriz atesta na cena que a verdade é relativa e pode ser manipulada.

Com vestimenta teatral, esse passado ganha uma poderosa capacidade de reinterpretacão. A experiência dolorosa é transformada em linguagem artística.

O cenário do espetáculo é composto de uma cozinha/sala de jantar de uma casa pobre. Os três personagens aparecem, falam pouco entre si. É um tempo de espera. A notícia da morte de Galvarino ainda não chegou. Na cozinha, a mãe (a atriz Elza Quinchaleo) depena uma galinha e prepara um caldo. A filha põe a mesa e Luis Seguel, que é o pai, interpreta o pai.

O tempo corre devagar, com o ar tenso, e as três figuras desenvolvem pequenas atividades caseiras. Há uma singeleza da dor da perda que nos atinge.

Quando a protagonista escreve as cartas, elas são mostradas numa tela. O silêncio dos dois outros personagens é gritante.

A música mapuche imprime uma dimensão de ancestralidade aquele encontro familiar. Marisol Ancamil apoxima-se de Antigone, quando exige do governo que faço o que for preciso para devolver o corpo do irmão morto. Seu discurso explode de sofrimento e revolta, na posição de impotência diante das autoridades que não cumprem seu papel público.