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Apolo não!

Crítica do espetáculo “(A)Polônia”, deKrzysztof Warlikowski, por Patrick Pessoa (Questão de Crítica)

MITsp 2016

 

Escrever no calor da hora sobre um espetáculo com a complexidade de (A)polônia, de Krzysztof Warlikowski, é uma temeridade. As múltiplas linguagens trazidas à cena (música, teatro, vídeo, instalação, performance, stand up, conferência acadêmica, manipulação de marionetes), o manancial de referências mais ou menos explícitas (que vão de Ésquilo a Jonathan Littel, passando por Eurípides, Kafka, Coetzee, Hanah Krall, Godard e muitos outros) e a ambição de articular algumas das questões humanas mais arcaicas (sobre a necessidade do sacrifício pessoal em prol de algum ideal ou mesmo de pessoas próximas; sobre a rebelião contra os “deuses” e o destino inaceitável por eles imposto; sobre a tragicidade inerente a qualquer decisão humana e a inescapável “culpa inocente” dos heróis trágicos) tendo em vista a necessidade de elaborar o passado recente da Polônia e expiar a culpa dessa nação no extermínio dos judeus, que “é o legado terrível que pesa sobre nossos descendentes” (no dizer do próprio Warlikowski), mereceriam sem dúvida um tempo e um espaço mais dilatados para a construção de um pensamento mais consistente. (Advertência ao leitor: a construção hermética, para não dizer confusa, desta introdução teve a pretensão de traduzir para a prosa da crítica a minha experiência como espectador diante das múltiplas camadas do espetáculo).

Sim, é uma temeridade escrever no calor da hora sobre um acontecimento político-teatral que ainda estou longe de ter conseguido digerir. As simplificações redutoras e os juízos apressados me parecem, neste caso, um destino tão inescapável quanto o dos heróis (gregos e modernos) postos em cena por Warlikowski. Seria prudente esperar por um momento mais oportuno, em que as condições para essa reflexão estivessem mais maduras. O problema é que, supondo que este momento algum dia possa chegar, talvez já seja tarde demais.

Amanhã (13/3, data das mais eloquentes, pela associação do número 13 ao Partidos dos Trabalhadores, inspirado na sua origem pelos mesmos ideais que presidiram a criação do “Solidariedade”, movimento político polonês que tentou combater sob um viés proletário o conservadorismo histórico daquele país), a imprensa golpista da nossa (a)polônia, tomada por um curioso furor santo de indignação seletiva, está convocando uma manifestação “patriótica” contra “todos os corruptos” (os “judeus” do nosso tempo), instaurando artificiosa e espetacularmente uma polarização entre “nós” (os justos, os puros) e “eles” (os corruptos, os impuros). Por mais que devam ser preservadas as diferenças entre o contexto histórico brasileiro e o polonês, entre o nosso tempo e a primeira metade do século XX, quando o fascismo e o nazismo levaram ao extermínio de milhões de pessoas, por mais que pareça forçada a comparação, agora, no calor da hora, não pára de ecoar em mim uma célebre passagem das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, na qual se lê: “O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história [calcada sobre a ideia de progresso] da qual emana tal assombro é insustentável”. A pergunta, sob essa ótica, não é a do humanista alienado – “Oh, como todos esses fatos horríveis puderam acontecer?! Ohhh!” –, mas sim a do materialista que lê a história a contrapelo: por que fenômenos como o fascismo, o nazismo e a Shoah não acontecem muito mais frequentemente?

Na realidade, com o mundo em guerra (a lista de conflitos ocorrendo no momento é tão extensa que não caberia aqui, incluindo aqueles que, na nossa particular guerra brasileira, levam ao genocídio de milhares de jovens negros todos os anos, evocado nesta MIT pela impactante performance Em legítima defesa, um dos pontos altos do festival), com todas as polarizações étnicas, religiosas, políticas e econômicas entre o Ocidente e o Oriente, com o recrudescimento de uma Guerra Fria que muitos acharam que estava definitivamente superada após a queda do muro, etc, etc, etc, talvez atos de inspiração nazi-fascista aconteçam muito mais frequentemente do que os olhos sempre marejados do humanista amigo da paz seriam capazes de enxergar. É que, e esta me parece ser uma das intuições estruturantes do espetáculo de Warlikowki, os pressupostos ideológicos que tornaram possível a eclosão dos totalitarismos do século XX continuam vivos e pulsantes nesta aurora do século XXI, constituindo talvez o “terrível legado para os nossos descendentes” de que fala o espetáculo (A)polônia.

Se, de acordo com tudo que acabo de dizer, A(polônia) não é apenas a Polônia, mas também o Brasil ou qualquer outro lugar em que as condições para fenômenos assemelhados à Shoah continuem a existir, eu ousaria dizer que o espetáculo a que assisti ontem não é sobre a Polônia, mas sim sobre Apolo. A imagem-síntese que consigo extrair do caos de estímulos visuais e palavras heterogêneas que foram literalmente despejados sobre os espectadores, de forma só aparentemente arbitrária (como no caso de qualquer obra de arte que mereça este qualificativo), é a imagem do deus grego Apolo, nu, com cílios postiços e o piru pintado de azul, tendo nas costas uma gigantesca tatuagem de uma forca da qual pende, enforcada, a estrela de Davi. A interpretação do deus como uma figura caricata, ridícula, afetada, grotesca, obscena é, posteriormente, numa segunda aparição em vídeo, reforçada por um discurso do mesmo Apolo, extraído da Oréstia, de Ésquilo, no qual, tentando defender Orestes pelo assassinato de Clitemnestra, sua mãe – o matricídio, no direito arcaico grego, era punido pelas Fúrias, divindades vingadoras dos crimes de sangue, que perseguiam até a loucura e a morte os culpados –, o deus afirma que a mãe seria só um vaso, um recipiente no qual o pai, o único verdadeiro responsável pela criação, depositaria sua semente e seu sangue. Orestes, sob esta ótica, não teria o sangue da mãe e não mereceria ser perseguido pelas Fúrias. Para além dos traços radicalmente misóginos que esse discurso têm para ouvidos contemporâneos, que Warlikowski habilmente maneja no sentido de aprofundar a repulsa de seu público pela figura do deus, os dois Apolos de (A)polônia têm em comum a recusa de toda mistura, de toda impureza, pregando literal e simbolicamente o extermínio do outro, seja judeu, seja mulher.

O espetáculo Apolônia, agora sem o parênteses (cuja manutenção serve a uma leitura distinta da proposta aqui), traz em seu título uma palavra que, etimologicamente, diz respeito a toda criatura “oferecida a Apolo”, a toda criatura que mereceria ser sacrificada pela sua impureza, pela sua alteridade, pelo fato de ter mais camadas do que aquelas que cabem na dicotomia bom-mau, justo-injusto, ético-corrupto, pelo fato de não ter apenas o sangue do pai (a lei, a fé, a ética de um Sergio Moro, figura das mais apolíneas em seus terninhos justos cortados sob medida, não por acaso merecedor de prêmios provenientes de instituições tão isentas quanto a Globo ou a Veja). Se, no plano do discurso, com a apresentação de dois Apolos derrisórios, Warlikowsi diz um basta a todos os sacrifícios em nome desse deus, no plano da própria constituição formal do espetáculo manifesta-se uma recusa de qualquer ideal de limpeza, de clareza, de organicidade, de harmonia, de equilíbrio, de beleza, características normalmente associadas ao nome de Apolo.

Quando comecei a escrever este texto, pretendia concluir criticando Warlikowski por sua visão unilateral de Apolo, que tem dois epítetos contraditórios: se por um lado é Febo, o resplandecente, aquele que impõe limites claros a todas as coisas (sua imagem mais conhecida), por outro lado é Lóxias, o obscuro, aquele cujos oráculos precisam sempre ser interpretados, sendo que o fato de mal interpretá-los não raro é a principal razão da queda dos heróis trágicos (vide o exemplo de Édipo, por exemplo). Pretendia dizer que, ao apresentar o deus de forma unilateral, fechando os olhos para a sua fundamental ambiguidade, e investindo numa montagem “puramente dionisíaca”, ele paradoxalmente teria acabado sendo mais apolíneo do que gostaria. Pretendia dizer, em suma, que ele não teria ouvido bem a lição de Nietzsche no Nascimento da tragédia. Ali, o filósofo diz que, ao matar Dioniso, o racionalismo socrático, em nome de Apolo, das distinções conceituais claras e distintas, teria acabado por matar também Apolo, já que Apolo e Dioniso seriam as duas faces de uma mesma moeda, nomes emblemáticos dessa ambiguidade ou tragicidade constitutiva do humano, dessa guerra eterna que é a vida. Ao contrário de Sócrates, eu pretendia dizer, em sua tentativa de matar Apolo, de interromper a ruína monumental feita dos cadáveres de todos que foram assassinados em seu nome (lembremos do “anjo da história”, de Paul Klee, na leitura de Benjamin), Warlikowski teria matado também Dioniso.

Era isso o que eu pretendia dizer, me atendo a uma crítica mais imanente das discutíveis opções formais feitas pelo diretor, que me fizeram sair do teatro com a sensação de ter visto uma nova repetição de uma velha fôrma, um dispositivo eminentemente irônico na lida com a tradição que teve grande potência no teatro dos anos 1990, mas que, à força de sucessivas repetições, acabou por esvaziar-se, convertendo-se em fetiche formalista. Mas, neste momento, a verdade é que eu não posso dizer apenas o que pretendia dizer. Escrevi esse texto sendo atravessado pelas palavras, pelo momento histórico que estamos vivendo, como os personagens de Ça ira, ponto culminante da MIT deste ano. As placas tectônicas que foram finalmente postas em movimento pelos governos Lula e Dilma (a despeito de todas as legítimas críticas que possamos fazer a certos aspectos de seus respectivos projetos de governo, o que não tem nada a ver com saber se eles são puros ou não) estão gravemente ameaçadas de serem novamente imobilizadas pela força reacionária de elites ancestrais que querem conservar os seus privilégios a qualquer preço, que, como em Ça ira, recusam visceralmente a ideia de uma verdadeira igualdade política. Contra essas elites, contra a catástrofe que se anuncia tão próxima, faço então coro com Warlikowski: Apolo não!

Uma história indelicada

Foto: Miroslaw Koczkodaj.
Foto: Miroslaw Koczkodaj.

Crítica a partir do espetáculo The Mother, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Cena Contemporânea 2015

Grosseira, alcoólatra e à beira da loucura. É com essas e outras palavras de semelhante calibre que se apresenta ao público a personagem central de The Mother, peça escrita em 1924 pelo dramaturgo polonês Stanislaw Ignacy Witkiewicz – ou simplesmente Witkacy. Àquela altura, a Polônia ainda sofria os efeitos da 1a Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que celebrava cinco anos de independência após permanecer, por mais de um século, dividida entre os impérios russo, alemão e austríaco.

Mas enquanto uma onda de otimismo parecia tomar conta da nação recém-empossada, a peça de Witkacy, como se previsse a tragédia que viria apenas 15 anos depois, com a eclosão da 2a Guerra a partir da invasão da mesma Polônia por exércitos russos e alemães, traz à cena um quadro marcado pela deterioração afetiva de uma família para a qual o futuro parece muito pouco promissor. “O ser humano já não faz mais sentido”, repete a mãe, em diferentes momentos do espetáculo.

Nesta montagem, assinada pela atriz polonesa Jolanta Juzskiewicz em parceria com o diretor tadjique Anatoly Frusin, todos os personagens são vividos pela mesma intérprete, que se apropria de elementos do texto, tais quais o alcoolismo, o uso de drogas e permanente ameaça da loucura, para transitar, sobretudo, entre os papeis da mãe, Nina, que conduz boa parte da peça, e de seu filho, Leon, qualificado pela própria mãe como inútil, idiota e sonhador – adjetivos ali tratados como equivalentes.

Se, nos primeiros instantes, a partir de uma visualidade quase escultural, a encenação se anuncia como uma espécie de instalação montada ante ao público, o texto de Witkacy rapidamente se converte no principal motor da cena, apresentando-se, de início, como um fluxo de pensamentos em voz alta que ressaltam a solidão da personagem. “Tenho certeza de que não há ninguém aqui”, afirma Nina, em uma de suas primeiras provocações ao público, constantemente desconcertado pelas irônicas observações da indelicada senhora.

Aos poucos, contudo, outros personagens são sugeridos, tal qual Leon, seu famigerado filho, e Dorothy, uma espécie de ajudante a quem Nina vez ou outra pergunta ou pede alguma coisa. O monólogo inicial passa a incluir, então, pequenos diálogos que atribuem complexidade à encenação e à relação da intérprete com o público, conquistando a cada instante novas camadas e novas possibilidades de fruição. “Talvez eu esteja morta”, sugere ela, em dado momento. “Talvez já esteja ficando louca”, pondera, algum tempo depois. “Ninguém sabe quem é”, sentencia, por fim.

Entre um gole de vodka e outro, Nina entoa alguns cantos católicos e conta encontrar no tricô o precário sustento da família, dando a ver alguns traços marcantes da cultura polonesa traduzidos em uma cenografia mínima, filiada ao chamado Teatro Pobre que, não por acaso, teve origem naquele país. Após deixar escapar desajustados traços relacionados ao próprio comportamento e à relação com o filho, ela pede desculpas ao público e atribui à própria história a perda dos bons modos. “As boas raças nunca ficam grosseiras”, observa, novamente entre o lamento e a ironia.