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Os corpos convictos e a batalha contra o cansaço

Crítica do espetáculo Ça ira, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/ DocumentaCena)

MIT 2016

 

Não foi uma experiência simples assistir à peça Ça ira, de Joël Pommerat no dia 4 de março de 2016, enquanto o Brasil passa por um processo acachapante de produção e manipulação de discursos com vistas à condução da opinião pública a um retrocesso de dimensões trágicas. Não foi uma experiência simples ouvir as declarações dos representantes do clero, tendo em mente os discursos da bancada evangélica, conhecendo o vínculo da igreja católica com a ditadura militar que um segmento da imprensa (!) quer restituir. Não foi uma experiência simples ouvir os representantes da nobreza, tendo em vista que o núcleo duro das polaridades políticas do Brasil atual se resume ao ódio que a classe média e que a classe alta têm da pobreza. Os nervos políticos do Brasil estão expostos. Por um lado, podemos comemorar a atualidade de Ça ira e a relevância de assistirmos a essa peça nesta semana sensível. Por outro, é triste dar-se conta (embora já saibamos) que o nível da discussão política que vemos na TV é pré-Revolução Francesa.

Mas, embora o calor da hora chame para a discussão extracena, os aspectos formais da encenação também convocam o senso crítico. A encenação nos coloca, a nós, espectadores, em diferentes estruturas. Em alguns momentos, estamos diante de cenas fechadas em si, que se não me engano são aquelas em que o rei está em seu ambiente familiar. Em outros, somos os destinatários de discursos prontos, a palavra nos é endereçada diretamente. Mas, na maior parte do tempo, estamos no olho do furacão, dentro do espaço de assembleia. Essa estratégia de encenação nos proporciona variações de estados emocionais, fisicamente muito concretos. E essa oscilação de estados me parece ser um efeito pertinente sobre nós espectadores, porque reflete as condições em que nós cidadãos nos vemos diante de impasses que não sabemos ou não temos como resolver.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Em alguns momentos, sentimos que não fazemos parte da discussão pública, que nossa participação é dispensável, que a quarta parede do teatro é a quarta parede dos grandes poderes. Em outros, sabemos que não somos interlocutores reais dos discursos que são cinicamente endereçados a nós – e isso pode nos alienar ainda mais que a quarta parede. Mas, nos momentos de assembleia, a política nos anima, nos faz querer gritar junto, vaiar, aplaudir. A teatralidade da assembleia chama atenção para a teatralidade do teatro. Não somos instigados a nos engajar em movimentos e deslocamentos literais, mas a teatralidade da assembleia nos dá consciência da nossa postura na cadeira do teatro, especialmente quando os corpos convictos à nossa volta ressoam na intensidade dos nossos batimentos cardíacos.

A dramaturgia nos deixa especialmente atentos quando coloca em debate falas que não se organizam de maneira maniqueísta, quando algo nos surpreende negativamente dentro de um discurso com o qual já estávamos concordando animadamente, ou quando vislumbramos uma centelha de razão em um discurso do qual já discordávamos a priori. É complexa a forma como Luís XVI é apresentado. Sabemos que sua cabeça vai cair, esperamos até ansiosamente por esse momento. Mas a força simbólica da monarquia na mente dos revolucionários é algo que nós, brasileiros do século XXI, não conseguimos vislumbrar muito bem. Ou conseguimos?… Além disso, é significativo que a peça não chegue ao relato da decapitação do rei. Há indícios de tragicidade nesse personagem que é Luís XVI e na narrativa que se põe em Ça ira, mas não há catarse. Os impasses não se resolvem. Voltamos para casa com a imagem do rei ainda com a cabeça acima dos ombros. E em determinado momento, deve ter passado pela cabeça de alguns que estar no teatro enquanto um circo midiático se erige lá fora pode ser tão angustiante quanto estar em uma assembleia pensando o direito dos homens enquanto o sangue corre pelas ruas.

A duração do espetáculo também atua sobre nossos corpos, mentes e afetos. A extensão é elemento da dramaturgia porque atua concretamente sobre os estados do espectador, age sobre suas resistências, derrubando algumas e erigindo outras. Cinco horas em língua estrangeira não é “para os fracos”. Mas devemos nos lembrar que a política também é, em larga medida, língua estrangeira. E o cansaço é uma das estratégias mais eficazes dos grandes projetos de manobras escusas – como o que estamos presenciando agora. A exaustão intelectual e física ao final do espetáculo espelha o nosso profundo cansaço com a politicagem daqueles que fazem da política um negócio lucrativo.

Um dos pactos do teatro é ficar até o fim. Estejamos despertos então.

 

O jogo democrático e suas contradições

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ça Ira, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

MIT 2016

O ano é 1789, mas poderia ser 2016. Estamos na França do rei Luis XVI, mas poderia ser em outro contexto, e assistimos a partir de múltiplos ângulos a conflitos de interesses que revelam divergentes visões de mundo, assim como deixam ver as sucessivas contradições que permeiam nosso comportamento político e, de igual modo, o comportamento político daqueles que, idealmente, deveriam nos representar. Em Ça ira, obra realizada pelo autor e diretor francês Jöel Pommerat em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, visitamos ao longo de três atos diferentes instâncias de um emergente sistema democrático no qual o povo, mesmo que ainda submetido à Igreja e eventualmente encantado com a mítica figura do rei, começa a reivindicar direitos e a questionar privilégios.

Iniciada com um pronunciamento formal do primeiro ministro francês sobre a eterna necessidade de se aumentar a receita do Estado, a encenação rapidamente ganha contornos mais complexos, convertendo, por vezes, o teatro – aqui compreendido como ambiente que inclui palco e plateia – em uma grande assembleia onde novas – e velhas – vozes surgem a cada instante. Desse modo, enquanto algumas cenas são vistas “pelo buraco da fechadura”, outras inserem os atores em situações de grande proximidade com o espectador, convertendo-nos em silenciosos integrantes dessa mesma assembleia. Nesse trânsito entre faces públicas, semipúblicas e privadas do sistema democrático, constitui-se, pouco a pouco, uma cena polifônica, difusa e por vezes caótica, marcada por vozes e visões dissonantes que claramente ecoam sobre o momento político e social que, como brasileiros, atualmente experimentamos. “Quais são as prioridades desse país?”, ouve-se, em certo ponto do espetáculo, sem que alguma resposta se ofereça.

Também a visualidade do espetáculo, não por acaso, nos parece bastante familiar. Apropriando-se de estruturas espaciais relacionadas a situações sociais concretas e, ainda que através de mediações, bastante conhecidas pelo espectador, tais como uma reunião oficial, um pronunciamento público e a própria assembleia de deputados, o que se tem em boa parte de Ça ira são ternos que circulam aqui e acolá, quase sempre movidos por homens brancos e discursos que não tardam a revelar suas contradições. Ainda que numerosos personagens e, portanto, o próprio espetáculo transitem por diferentes ambientes e contextos, uma atmosfera de inércia, repetição e esvaziamento por vezes toma conta da cena, dando a ver um claro engessamento das estruturas democráticas, frequentemente sabotadas por aqueles que apenas desejam manter-se no poder, seja na França do século XVIII ou no Brasil atual.

Conduzido por três grupos distintos, ali associados à Igreja, à nobreza e ao povo, os debates a que assistimos em cena colocam em disputa uma visão materialista da realidade, permeada por problemas concretos como a fome, a guerra civil e a fundadora desigualdade, e uma visão católica, segundo a qual tal desigualdade seria um pressuposto a ser respeitado e aceito como fato natural. Apoiado em conceitos subjetivos como o bem, o belo e o sagrado, este segundo grupo, ali representado pela Igreja e a nobreza, recorrentemente desqualifica as questões colocadas pelo primeiro, constituindo declarada recusa ao mundo real e suas questões. Nesse sentido, enquanto uns entendem a justiça como mera execução da lei, outros questionam a lei e associam a mesma justiça a verdades concretas, reconhecíveis por todos.

Imersos neste infindável debate, gradativamente nos reconhecemos, de dentro da plateia, como integrantes de um mesmo grupo social. Desprovidos de privilégios como a voz e também a ocupação dos espaços de voz, participamos passivamente do jogo democrático. Ainda que vez ou outra nos identifiquemos com visões e conflitos postos em cena, somos conduzidos a uma situação em que a atitude silenciosa que nos é reservada se torna cada vez mais angustiante. Silenciosos, assistimos a debates que muito nos interessam, mas dos quais somos frequentemente excluídos, tocando em temas como o monopólio da violência pelo Estado, a dimensão utópica dos direitos humanos e o absurdo dever de respeitar um sistema social que, a partir de estratégias mais ou menos evidentes, nos conduz ao apaziguamento e nos submete aos mandos e desmandos de Deus, do Estado e até mesmo da propriedade privada.

Cúmplices silenciosos de uma atitude cínica e de discursos esvaziados que carregam em si claras contradições em relação às práticas daqueles que os proferem, testemunhamos a exaustão de um sistema cujas instituições inegavelmente vêm se deteriorando ao longo do tempo. Como se voltássemos às origens desse sistema exausto que hoje nos governa, somos convocados a refletir sobre a persistência histórica de estruturas políticas que muito pouco se transformam, convertendo, por exemplo, a antiga nobreza em uma classe de governantes que, para além dos privilégios de outrora, têm, hoje, suposta chancela do povo em relação às decisões que tomam em salas, gabinetes e assembleias. ”Vocês, que nunca subiram aqui, um dia vão se arrepender”, escutamos, mais adiante, em novo apelo para que o silêncio manifestado na sala de teatro não se reproduza nos espaços políticos e sociais que ocupamos do lado de fora.

Publicado no site da MITsp em 5 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/o-jogo-democratico-e-suas-contradicoes/

Das narrativas no teatro e das narrativas do teatro

Crítica do espetáculo Cinderela, por Daniele Avila Small (Questão de Crítica/DocumentaCena)

MIT 2016

 

Voltar-se sobre si mesmo é procedimento comum ao teatro. Os grandes clássicos, que formam o teatro, são sempre revisitados pelos artistas – dos mais tradicionais aos que trabalham para inventar novas formas. Em certos casos, o que motiva os artistas é a ideia de inserir-se na história do teatro com um desempenho memorável de um grande papel ou com uma encenação eficaz. Nesses casos, o resultado costuma ser o do simples acúmulo. No entanto, em outros casos – mais raros -, a montagem de um clássico se dá porque alguém tem uma hipótese sobre aquela narrativa, um olhar que não apenas continua, mas que reinsere aquele texto no mundo e que faz o teatro encontrar a si mesmo na sua história, costurando uns fios no seu tempo.

Recontar as narrativas é procedimento comum ao ser humano. As grandes histórias, que nos formam, são perpetuadas pelo teatro, pelo cinema e pela literatura. E, no caso dos contos infantis, elas também são repassadas pela transmissão oral, que infiltra nas crianças, com as narrativas, estruturas de pensamento e de sentimento – muitas das quais, a duras penas, mais tarde vamos tentar nos livrar.

Considerando a montagem de Joël Pommerat, recontar Cinderela não é repetir Cinderela. Diante do espetáculo, cabe a nós espectadores nos perguntarmos que hipóteses tem o espetáculo sobre essa narrativa. E que hipóteses podemos formular a partir do que vimos. Podemos nos perguntar, por exemplo, que estruturas profundas identificamos na Cinderela que temos em mente e como estas estruturas são ou não são desconstruídas na peça.

A Cinderela padrão é uma personagem sem complexidade, porque sem foro íntimo, que passa da infelicidade à felicidade por fatores externos e por uma ideia cristã de merecimento, sob a qual quem sofre e é humilde em algum momento vai ser recompensado e feliz. A mensagem para as meninas é: fique em casa, faça o trabalho doméstico, ature a família, mesmo que não tenha por ela qualquer sensação de pertencimento, porque, um dia, um fator externo vai acontecer e a relação com um homem vai trazer felicidade. Além disso, todas as mulheres do mundo (a fada não é do mundo) ou te abandonam ou querem o seu mal.

A Cinderela de Pommerat tem interioridade: um passado e um sentido (mesmo que torto e fruto de um mal-entendido). As provações a que se submete são, em larga medida, autoinfligidas: ela é corresponsável por suas mazelas. O fator externo mágico é uma falácia: a fada não funciona como fada, mas como amiga. Ou seja, o que vem tirar Cinderela da confusão mental e do autoconfinamento é a amizade entre mulheres. O homem que ela vai amar é tão perdido e tem tantas neuroses e traumas quanto ela e, por mais legal que seja a relação que eles vão ter, este não é o telos, a finalidade, das suas vidas.

As subversões na trama, como o chiste com o sapato, a postura meio blasé da menina, a cena do grande momento entre o casal, em que eles estão dançando sozinhos-juntos e não fundidos no élan de um beijo romântico de novela, cada um desses aspectos poderia ser desdobrado em ótimas discussões. O autoengano da madrasta, por exemplo, que é tão cômico em um primeiro momento, mas tão triste e tão comovente com o desenrolar da situação, mereceria uma análise à parte. O trabalho de cada ator, o engenho dos elementos de cena e as operações dramatúrgicas do autor-encenador também poderiam ser destacadas e desenvolvidas em uma crítica feita com mais tempo e mais espaço. Mas todo o trabalho formal da construção do espetáculo converge para as questões estruturais e temáticas da narrativa e nos faz pensar sobre os seus temas.

O pulo do gato está justamente no fato novo da fábula: o efeito das palavras da mãe em seu leito de morte.

Por um lado, somos todos (meninos e meninas) assombrados pelas palavras de nossos pais. Com isso, a peça desliza do mito feminino que nos persegue para os terrores da infância que sobrevivem na mente adulta. Mas, para além disso, a fábula é toda calcada na falha da escuta, no mal-entendido, no sentido de mal-ouvido. A passagem da infelicidade para a felicidade de Cinderela de Pommerat vai do não saber escutar o outro ao ser capaz de escutar, finalmente, o outro.

O teatro não é simplesmente para se ver, mas também e principalmente para se escutar – é na relação entre fala e escuta que está sua origem mais arcaica. Assim, faz sentido que, por mais que a visualidade espetacular norteie muitas criações contemporâneas, a narrativa sempre bate o pé na porta para encontrar o seu lugar. É sintomático da atualidade da programação da MITsp que essa terceira edição se abra com espetáculo tão exemplar da força mítica, ancestral e telúrica da reinvenção da narrativa no teatro.