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Teatro historiográfico do presente

Crítica da peça O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol

A primeira coisa que me chama a atenção em O rumor do incêndio, do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que se apresenta neste novembro de 2015 na II Bienal de Teatro da USP, é a ideia de um projeto artístico. Pode parecer uma coisa óbvia, que todo espetáculo teatral é um projeto artístico, mas não é bem assim. E quando falo em projeto artístico nesse caso específico não me refiro a um projeto de investigação formal, de pesquisa de linguagem, das poéticas do teatro, suas especificidades ou as possibilidades de criação interdisciplinar (que não deixa de ser uma especificidade do teatro). Me refiro a uma motivação que não se restringe às formas – embora não as deixe de lado. Não se trata simplesmente de entender o trabalho como uma espécie de teatro político, categoria carregada de diversos preconceitos e formas envelhecidas. Embora o conteúdo seja declaradamente político no sentido mais imediato da palavra (aquele que diz respeito a golpes, partidos, revoluções, guerrilhas, eleições, etc) e as formas do teatro documentário sejam características de um teatro político, me parece que O rumor do incêndio demanda um outro olhar, que ainda não sabemos qual é. O que é o teatro político do nosso tempo?

Movidos pelo pensamento crítico sobre o seu passado histórico, o questionamento, dirigido a si, sobre o presente que parece inerte e acreditando em perspectivas interessantes para o futuro, ou seja, sem idealizações, culpas, nostalgias e, principalmente, sem niilismo, o grupo criou uma peça que narra, com diferentes pontos de vista, um recorte da história do México: os anos 1960 e 1970.

O projeto artístico de que falo é um projeto que inclui o fazer teatral e o estar no mundo – ou melhor, o fazer teatral como um estar no mundo, consciente da sua historicidade. O fato mesmo de que a peça é uma espécie de teatro historiográfico nos faz pensar sobre as formas da história, não apenas sobre as suas narrativas – debate comumente restrito aos historiadores e teóricos da disciplina. Pensando em O rumor do incêndio, bem como em Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán, outra peça do mesmo grupo sobre a qual tive oportunidade de escrever em outra ocasião, e espetáculos bem diferentes como Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen, Mi vida después, de Lola Arias, Guerrilheiras, projeto da atriz carioca Gabriela Carneiro da Cunha e Um museu vivo de memórias pequenas e esquecidas, de Joana Craveiro, de Portugal, tenho o palpite de que o teatro documentário contemporâneo está a fim de repensar a escrita da história. E não me parece forçado dizer que há um protagonismo feminino nessas iniciativas. A história oficial, especialmente a história política, a que mais chega ao senso comum, é uma história escrita por homens sobre homens em um mundo dos homens. Até agora.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O rumor do incêndio coloca duas narrativas em paralelo. Uma delas é a história dos acontecimentos tidos como mais importantes, como os atos das instâncias de governo, as batalhas da luta armada, os números, as datas e as narrativas que podem ser comprovadas com documentos, matérias em jornais e fotos oficias. Esse tipo de narrativa histórica é sempre tomada como fiel à realidade – mesmo que saibamos que a história oficial dos países da América Latina é feita de mentiras, ocultamentos, adulterações. A peça apresenta essas narrativas em diversos momentos a partir de maquetes e soldados de brinquedo, posicionados em uma bancada comprida e filmados ao vivo pelos atores, enquanto as imagens geradas são projetadas em um telão. As imagens de guerra que conhecemos são imagens cinematográficas, extremamente espetacularizadas, ou televisivas, com os enquadramentos dados pelas regras do jornalismo midiático, que seleciona o que podemos e o que não podemos ver e como as imagens devem ser vistas. A peça faz um paralelo entre esses mecanismos e uma ideia comum de historiografia, linear, plana e sem lacunas como a bancada usada como suporte para as encenações com as maquetes.

A outra é da ordem da micro-história e de natureza biográfica: a história de Margarita Urías Hermosillo, guerrilheira que passou alguns anos na prisão e, depois disso, dedicou-se a outros fazeres: a antropologia, os amores, os filhos. As imagens que comprovam a sua existência não são apenas seus documentos, mas fotos cotidianas, além de relatos de quem a conheceu e conviveu com ela. O modo de apresentação da sua história não é como aquela narrativa filmada na bancada linear. Sua história é dramatizada. Os atores Francisco Barreiro e Gabino Rodríguez e a atriz Luisa Pardo encenam momentos da sua vida. Luisa também faz a personagem Margarita falando na primeira pessoa. Vemos então a dimensão de liberdade criativa possível para narrar a vida de uma pessoa real, que não é um personagem histórico, no sentido da história política oficial. Margarita seria uma anônima da história do México. O elemento cenográfico mais usado nessa dramatização da vida de Margarita é uma mesa, que dá a dimensão de uma história vivida em casa. Soma-se a isso o recurso de fazer a personagem falar na primeira pessoa, o que dá uma dimensão humana e ressalta o quanto o processo de ficcionalização é intrínseco à escrita da história, mesmo quando não é evidente.

A cenografia é bem determinante. Todo os elementos usados na cena estão dispostos no cenário. Tudo é, por assim dizer, útil. Mas há também uma artificialidade declarada, evidente no piso de grama sintética e nas plantas artificiais penduradas ao fundo do palco. É como se a cenografia quisesse evidenciar a artificialidade mesma de falar da luta armada no campo de décadas atrás, desde um ponto de vista urbano contemporâneo.

De modo geral, costumamos pensar o drama como forma de discutir os problemas do núcleo familiar, de ordem ética e moral, e o teatro épico como meio de propor questões coletivas, de ordem política. A peça do Lagartijas nos apresenta um épico que também é familiar, bem como uma história familiar que também é política, o que fica ainda mais claro para o espectador nos últimos minutos do espetáculo. A ideia de conferir humanidade à narrativa histórica pode ser um meio de torná-la mais próxima, para podermos olhar para o passado como algo que realmente faz parte do presente – o que todos sabemos, mas às vezes nos esquecemos.

A pergunta central do projeto como um todo é anterior às questões da cena e as ultrapassa, mas é o que finca o espetáculo no chão do presente. Se as gerações que nos sucedem quiserem falar de nós, do que fizemos quando jovens, elas falariam de quê? A pergunta nos interpela, nos chama para a conversa e nos coloca em cheque, mas o faz sem aquela empáfia de teatro político velho em que os artistas acham que têm que despertar os espectadores do seu sono de alienação. Em O rumor do incêndio, estamos todos no mesmo lugar, em uma conversa entre iguais. Nenhum de nós sabe o que deve fazer pelo futuro, nem o que deveria estar fazendo no presente. Mas a peça nos convida a abordar o problema por outros ângulos, fazendo do teatro épico, político, documental e historiográfico um lugar de pensamento com afeto.

De imagens, estados, belezas e vaidades

Crítica da peça Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores

II Bienal de Teatro da USP

Em cartaz na SP Escola de Teatro e integrando a programação da II Bienal de Teatro da USP, Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores apresenta uma dramaturgia de estados com imagens da vida sexual homoafetiva na solidão da vida na cidade. Com direção de Marcelo D`Avilla e Marcelo Denny, o elenco formado por 21 homens e uma mulher, Camilla Ferreira, realiza movimentos predominantemente coreográficos e alguns poucos dos quais se pode vislumbrar uma narrativa, uma ideia de cena mais identificada com o teatro. Assim, não temos personagens, mas figuras praticamente despersonalizadas, corpos mais que pessoas. As imagens são por vezes alegóricas, por vezes literais.

O espetáculo tem dois momentos, norteados por sentidos opostos. O primeiro, mais longo e mais tenso, mostra os corpos numa perspectiva sexual violenta, solitária, nada romântica, em que líquidos, fluidos corpóreos e externos se misturam e se espalham, muitas vezes respingando o espectador. A ideia da proximidade física do espectador parece condizente com a poética das imagens que talvez perca a dimensão de plasticidade à distância. Algumas imagens são fortes, têm presença e uma estranha beleza, mas outras são apenas explícitas e reiterativas, o que pode provocar uma oscilação de interesse no espectador. A duração de alguns quadros também contribui para certo esvaziamento. O esgarçamento acaba por jogar luz sobre a vaidade do ator por trás do trabalho, enfraquecendo o trabalho em si. No segundo momento, isso se desfaz, mas voltaremos a essa parte mais à frente.

Foto: Hélio Beltrânio.
Foto: Hélio Beltrânio.

É perceptível que o grupo realiza a sua proposta neste espetáculo. No entanto, algumas questões da proposta mesma podem ser brevemente discutidas aqui, também como problemas gerais do teatro, mais que da peça especificamente, embora esses problemas estejam ali. Uma delas é a ideia de entrega – o que estimula o problema da vaidade acima mencionado. Acontece com frequência quando um ator ou uma atriz está fazendo um trabalho que demanda um esforço físico exacerbado ou uma exposição pessoal além do comum, que ele ou ela fiquem envaidecidos da própria entrega. Isso também acontece porque é comum que as pessoas fiquem elogiando esse tipo de desempenho. Por mais que o teatro seja feito de méritos compartilhados, os trabalhos individuais também merecem ser celebrados, certamente. O problema é quando o valor de desempenho da entrega se sobrepõe ao trabalho e fica visível na cena.

A relação com o espectador também pode ser levantada. É uma espécie de recalque do teatro querer incomodar o espectador pela condição mesma de ser espectador. O espetáculos de artes cênicas constituem a única categoria de obras de arte que simplesmente não acontecem sem espectador. Mesmo a performance art pode ser realizada sem espectador, tendo apenas registro audiovisual ou fotográfico e não deixa de ser performance. Peça de teatro sem espectador é ensaio. Por que então querer que o espectador deixe de ser “apenas” espectador, “meramente” um espectador, se essa é uma condição ontológica do teatro? A ideia de sujar o espectador, deixar sua roupa manchada ou com cheiro da mistura de líquidos e fluidos que se espalham pelo chão do espaço cênico é anacrônica nesse sentido. A querela do teatro consigo mesmo continua sendo uma discussão válida? Não superamos isso ainda?

Na segunda parte, acontece uma mudança de estado significativa, que chega como um alívio e consegue atingir uma leveza imprevisível, tendo em vista a tristeza e a agonia da primeira parte da peça. E o que me apareceu muito bonito é que a transição parece se dar justamente com a entrada em cena de uma mulher. Os atores encenam um convite a uma pessoa da plateia que de pronto aceita e se junta à cena. Percebemos em um instante que se trata de uma combinação prévia, até porque eles não ficam tentando nos enganar muito tempo. Logo ela se despe e inicia uma coreografia com eles. Sua presença traz uma alegria contagiante para a cena e toda a movimentação se torna uma grande celebração, da qual alguns espectadores são gentilmente convidados a tomar parte. Nesse ponto, com as vaidades menos evidentes e uma relação mais amigável com o espectador, o espetáculo se encerra com uma virada cheia de esperança para a vida lá fora.

Um autêntico documento ficcional

Crítica da peça Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Nomeando Jacy

Crítica de Jacy, peça do Grupo Carmin

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

“A memória é uma força, não um fardo.”

Crítica da peça Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.

 

O fetiche da miséria e a maldade do outro

Crítica da peça Condomínio Nova Era, do grupo A Digna Companhia

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.

Exposição precoce

Crítica da peça Punaré e Baraúna da Agrupação Teatral Amacaca (ATA)

Cena Contemporânea 2015

 

O número musical que abre (e fecha) o espetáculo Punaré e Baraúna da Agrupação Teatral Amacaca (ATA) já nos indica que se trata não simplesmente de um grupo que está em início de carreira, o que está explicitado no programa do festival, mas que vamos assistir a um espetáculo voltado para o público jovem. Nesse número, os integrantes do grupo tocam, cantam e dançam com muito entusiasmo uma música sobre eles mesmos, numa espécie de apresentação.

Para falarmos sobre Punaré e Baraúna, peça dirigida por Hugo Rodas, precisamos embaçar a ideia de que a peça está na programação de um festival internacional. Sempre vemos as coisas em relação a outras, isso é inevitável, e ver uma peça dentro de um festival também é ver essa peça em relação às demais que compõem o recorte da curadoria. Mas não podemos fazer isso com esse espetáculo, tendo em vista que seu ponto de partida é bem diverso das peças de diretores e grupos que integram esse recorte, como Christiane Jatahy, Marcio Abreu, e Adriano e Fernando Guimarães, para ficarmos entre referências do teatro brasileiro. Mas não proponho aqui uma crítica paternalista. A proposta desse texto é pensar o espetáculo pelo que se apresenta na cena, tentando enxergar as ideias de teatro que podem ser fundadoras dos problemas que ali aparecem.

Foto: Daniela Magalhães.
Foto: Daniela Magalhães.

Vemos logo de cara uma noção geral de trabalho de ator, que aparece em maior ou menor medida em todo elenco e coro: aquela ideia de que o esforço físico aparente é sinônimo de qualidade e teatralidade por excelência. Aparecem os fetiches de “desafios” para o ator iniciante, como fazer um animal, um personagem bêbado ou louco, mostrar habilidades físicas, como fazer acrobacias, se arrastar na terra, dançar, cantar e fazer sotaques. Natural da juventude, essa ideia me parece fazer parte de uma cultura de escola de teatro que toma o fazer teatral como um sonho a se realizar, algo especial e idealizado, que diz respeito mais à fantasia de ser artista do que à criação de obras que precisam estar no mundo. Percebe-se um encantamento pela ideia geral de “ser ator” e “fazer teatro”, que vem na frente do trabalho em si.

Esse olhar de idealização aparece até mesmo na escolha do texto e do tema: um sertão idílico, da pobreza lírica e da miséria romantizada. Daí vem a armadilha do sotaque “nordestino”, que não se percebe de que parte do nordeste poderia ser. A falta de rigor no exercício da prosódia puxa o tapete da ambientação cênica, que tem sua plasticidade mas acaba funcionando apenas como moldura visual.

Nas atuações, podemos perceber alguns vícios de grupo iniciante de teatro. Um exemplo disso é o trabalho da atriz que faz a personagem Cicica. Logo no início, ela também faz uma senhora, que se dirige diretamente à plateia. Ela passa diretamente ao registro de atuação de teatro infantil, sublinhando a idade avançada da personagem, criando uma voz específica mas pouco elaborada, marcando com todos os recursos possíveis a diferença para o outro personagem, também defendido numa chave única: a da sensualidade de menina que não duvida de si. Todos os demais personagens também poderiam ser mais alegóricos do que esquemáticos, mas as atuações não conseguem dar essa dimensão.

Os números musicais, que por um lado merecem elogios, por outro também denunciam aquela atmosfera de autocelebração, o que fica bem claro na repetição (um excesso) do número que abre o espetáculo, em que os integrantes do grupo estão tomados pelo élan da realização pessoal, mas que os expõe em um lugar um tanto infantilizado. Teatro se faz mais com rigor e senso crítico do que com garra e entusiasmo. E o entusiasmo mal direcionado pode ser inimigo da criação.

É interessante que o festival ofereça uma programação para diferentes faixas etárias, mas é problemático que isso não esteja exatamente demarcado. Punaré e Baraúna, mesmo com seus problemas, poderia ser melhor apreciado, encontrar (e colaborar para formar) um outro público de teatro, se estivesse numa mostra de teatro jovem ou algo assim, mas ficou um pouco deslocado na programação do Cena Contemporânea.

Uma peça-mediação ou “Hamlet adora o teatro”

Crítica de Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães

Cena contemporânea 2015

 

Mediação foi um termo bastante usado nos debates do Colóquio DocumentaCena de Crítica de Teatro, realizado há alguns dias no Leituras da Cena. Foi discutido o papel da crítica como mediação criativa na relação do teatro com o público na atualidade, diante da heterogeneidade das poéticas contemporâneas. Mas também podemos dizer que a mediação já é um papel do próprio teatro, sendo o espetáculo teatral uma mediação entre ideias imateriais dos artistas criadores e a materialidade da cena. Hamlet – Processo de revelação do Coletivo Irmãos Guimarães é um exemplo de explicitação disso. Não se trata de uma encenação da peça de Shakespeare, mas de uma apresentação comentada de sua trama e de uma hipótese sobre suas questões dramatúrgicas.

Outro solo da programação poderia se aproximar desse Hamlet, a montagem de Ricardo III, em que o ator Gustavo Gasparani apresenta a trama e faz cenas, interpretando diversos personagens. Mas a criação dos Guimarães com Emanuel Aragão parte de premissas completamente diferentes. O ator, que também assina a dramaturgia, não faz personagens, nem cenas, com exceção de alguns solilóquios do protagonista. Nem é proposta da peça passar por todas as cenas. Muita coisa fica de fora, sem perdas. Ofélia não é uma questão, Fortimbrás não é sequer mencionado. O foco é o Hamlet, as questões existenciais que comandam a trama e a razão do postergar-se da ação. Algumas imagens, como a descrição da violência do mar nas falésias de Elsinor, têm um papel mais potente na construção de uma contextualização do enredo do que teria uma exposição minuciosa da narrativa com todas as suas subtramas.

Foto do programa da peça.
Foto do programa da peça.

Estamos falando da apresentação de uma leitura crítica, ou seja, uma interpretação que faz escolhas, que confere ênfases, que assume um posicionamento diante de um objeto, que toma para si uma dimensão autoral do Hamlet. Isso fica claro quando logo no início o ator diz que eles precisaram fazer uma nova tradução do “ser ou não ser”. Ele apresenta argumentos para escolhas diferentes daquelas que já conhecemos e mostra a tradução, que está no programa da peça, sem fazer pra valer, por enquanto, o momento clássico e temido da tragédia de Shakespeare. O deslocamento desse solilóquio na trama é como uma defesa, uma evidência, a argumentação definitiva da hipótese sobre a peça que é apresentada na tradução desse texto nuclear do entendimento que se tem sobre o Hamlet: exemplo preciso do que é uma ação de dramaturgia sobre um texto prévio.

Nos solos do protagonista, o ator começa falando sobre o que vai fazer, situando na trama aquele trecho que vai dizer, e desliza delicadamente para uma “atuação propriamente dita” (expressão que uso aqui na pressa, na falta de outra e com muitas ressalvas, por isso entre aspas). Sem dúvida, ele está atuando o tempo inteiro, mesmo que esteja fazendo a si mesmo, lançando mão de uma série de truques de atuar como se não estivesse atuando, mas nesses momentos ele passa a “fazer o Hamlet”, embora dando a perceber, apenas sub-repticiamente, que continua apresentando uma hipótese sobre a peça.

Em um texto mais longo e com maior tempo de elaboração, poderíamos fazer uma digressão sobre as ideias de verdade e revelação presentes nesse Hamlet. Emanuel apresenta Horácio como aquele que diz a verdade e aponta que Hamlet, quando se dirige à plateia, fala a verdade. O fantasma do pai procura o filho para contar a verdade. Hamlet diz que o teatro é capaz de fazer um criminoso confessar a verdade. A peça de teatro escrita por Hamlet e a subsequente reação de Claudio funcionam como uma comprovação de que o fantasma do pai disse a verdade. E temos, no subtítulo, a palavra revelação. Poderíamos pensar no conceito de aletheia, que diz respeito à verdade como desvelamento (um processo), que pode ser uma espécie de revelação, uma ideia de verdade que não é o oposto de mentira, mas a negação do esquecimento – uma questão seminal do personagem Hamlet. Mas isso vai ter que ficar para outra ocasião.

Por fim, vale comentar a ênfase da peça sobre o teatro. Antes de narrar a cena dos atores, Emanuel nos fala do quanto Hamlet adora o teatro, da proporção que o teatro tem na peça e do fato de que Shakespeare escreveu para si mesmo o papel do primeiro ator. Em certa medida, podemos ver a peça como uma homenagem, uma declaração de amor ao Hamlet e ao teatro a partir desse exercício de mediação sobre um clássico do teatro que também é cheio de mediações sobre o teatro. E nesse sentido esse Hamlet se aproxima de Teatro Invisível, do grupo Matarile Teatro, que esteve na programação do festival alguns dias atrás.

Outras observações poderiam ser feitas sobre a dramaturgia, como a ótima variação de extensão e ritmo na expansão ou condensação de diferentes partes da peça de acordo como a temperatura de cada ato, ou as pequenas idiossincrasias da dramaturgia de Emanuel Aragão, que no início e no final carimbam uma espécie de assinatura do dramaturgo, como se houvesse uma necessidade de colocar ali uma marca da filiação desse trabalho a projetos anteriores de sua autoria. Mas, passados os limites de extensão e prazo de entrega do texto, paramos subitamente por aqui…

Um encontro de teatro

Crônica da apresentação de Os idiotas, com o ator e diretor Sidiki Bakaba

Cena Contemporânea 2015

 

Antes de falarmos propriamente de Os idiotas, faço uma breve observação. Na programação do festival, a peça está apresentada como performance, o que pode causar mal-entendidos. Em francês, inglês e espanhol, performance pode querer dizer simplesmente espetáculo ou peça de teatro. Mas em português, quando falamos que vamos assistir a uma performance, estamos nos referindo a algum trabalho de performance art. O que Sidiki Bakaba nos oferece é uma peça de teatro, que não tem relação com a performance art.

Em ocasiões anteriores, tive oportunidade de conhecer um pouco (muito pouco, na verdade) do teatro de países africanos de língua portuguesa, que me pareceu bastante influenciado pelo Teatro do Oprimido de Augusto Boal, um teatro socialmente engajado que se entende como arma pedagógica. Nesta peça da Costa do Marfim, país africano de língua francesa, o compromisso com as questões sociais aparece como inspiração temática e o tratamento dado é mais literário do que dramático. Vemos ali um teatro reflexivo, que não é explicitamente político. O texto de Os idiotas é quase exclusivamente narrativo.

Foto: Rômulo Juracy.
Foto: Rômulo Juracy.

Os idiotas é um solo do ator e diretor marfinês de longa e bem-sucedida carreira no teatro e no cinema, Sidiki Bakaba, importante figura pública da Costa do Marfim. Trata-se de um espetáculo de dezessete anos atrás, que foi trazido de volta à cena especialmente para essa passagem de Sidiki por Brasília, para participar das atividades formativas do Cena Contemporânea com uma oficina para atores. Além de atuar, ele divide a direção com Khoffi Kwahulé.

A dramaturgia é estranha para a nossa cultura de texto dramatúrgico. Há um texto inicial que funciona como um prólogo, no qual um personagem (que vamos conhecer) é apresentado. Em seguida, entra o personagem, que vai contar histórias para um interlocutor invisível ao longo do espetáculo. Esse recurso do personagem invisível fragiliza a ação da peça, até porque não há uma preocupação da encenação em legitimar o código. Na verdade, não há um trabalho de encenação como o conhecemos, mas uma economia de recursos, que concentra toda a responsabilidade na presença do ator. Além disso, o registro de atuação de Sidiki também não é familiar. Para nós, espectadores de um festival, interessados no teatro contemporâneo internacional, com suas poéticas singulares, vemos em Os idiotas um teatro que parece não apenas de um lugar cultural distante, mas de outro tempo histórico.

Diante dessas constatações, logo de início é possível perceber que, para estabelecer um diálogo com o trabalho que se apresenta diante de nós, precisamos nos desfazer dos parâmetros que costumam nos acompanhar no teatro. Mas isso não é nada fácil. Assim, nos encontramos em uma situação de enfrentamento com o fenômeno teatral: precisamos lidar com o outro – outra linguagem, outra noção de teatro, outro contexto cultural.

Não à toa, a peça não está na programação de espetáculos e sim nos Encontros do Cena. Se o festival nos convida ao intercâmbio com artistas de diferentes países, precisamos entender que tipo de troca podemos fazer em cada caso. Mesmo assim, caberia uma melhor mediação, que pudesse contextualizar o teatro marfinense, a situação política do país e sua produção cultural.

Diante de Os idiotas, não sabemos a princípio em que território estamos nem se vamos conseguir nos deslocar para algum lugar de onde possamos co-habitar aquela ideia de teatro. Minha impressão particular é de que não consegui fazer esse deslocamento, não tive uma experiência estética, artística, mas tive uma experiência cultural: conheci um artista, um espetáculo, compreendi algumas questões relevantes para o seu meio cultural.

Houve uma série de problemas técnicos com as legendas. Isso provocou um atraso, o que fez com que alguns espectadores precisassem sair antes do fim. Mas as legendas também falharam muitas vezes durante a peça, especialmente na segunda metade, impedindo que os que não entendem francês acompanhassem a narrativa. E isso também fez com que muitos desistissem e fossem embora. Essa falha provocou a perda do valor literário do texto, perda significativa diante da poética narrativa da peça – motivo pelo qual chamo esse texto de crônica, não de crítica. Mas um grupo de espectadores ficou até o fim, mesmo não entendendo as palavras, e o ator, diligente, continuou o seu trabalho. E o que aconteceu ali no auditório do Museu Nacional de Brasília foi realmente um encontro.

Não se vai embora do teatro. Nunca se sabe o que nos reserva o final. Após os sinceros e dedicados aplausos, Sidiki nos apresentou uma breve fala sobre como ele vê o Brasil, seu desejo de se apresentar no país e a importância da sua passagem por aqui. Assim, depois de conhecer seu teatro e sua técnica, conhecemos também a ética de homem de teatro presente no seu discurso e no seu cansaço – e a ética do teatro nos circunscreve em um mesmo universo, viabilizando a transposição das fronteiras estéticas.

Montagem: operação crítica sobre ficções e desejos

Crítica da peça Brickman Brando Bubble Boom, do Agrupación Señor Serraño
Cena Contemporânea 2015

 

Para escrever um texto curto sobre Brickman Brando Bubble Boom, ou simplesmente BBBB, espetáculo do Agrupación Señor Serraño realizado em 2012 em parceria com o Centre d’Arts Escèniques de Terrassa e com o apoio de diversas instituições, é preciso concentrar-se em um recorte específico, tendo em vista que o espetáculo – barroco em sua multiplicidade de meios, temas e técnicas – oferece diversas possibilidades de entrada. Também é preciso abrir mão de fazer uma descrição mais generosa para o espectador que não viu a peca. O recorte específico desse texto é a observação da montagem – procedimento presente em várias camadas da construção da cena – como operação crítica nuclear do espetáculo.

A peça do coletivo da Espanha tem um motivo central, subjacente a todos os seus elementos: o anseio por um lar, que se desdobra no desejo da compra de uma propriedade, necessidade real mas ao mesmo tempo mais um paradigma de consumo capitalista. A partir daí, o grupo apresenta duas narrativas cruzadas – o que já se configura como montagem. Uma delas, a vida e os empreendimentos imobiliários de um personagem fictício da Inglaterra do século XIX, Brickman. Outra, a vida de Marlon Brando e sua lida problemática com a ideia de lar, família e suas excêntricas propriedades. Entre as duas biografias, montagens de cenas de diferentes filmes de Brando, dubladas ao vivo e legendadas de modo a parecer (jocosamente) a narrativa da vida de Brickman vivida no cinema pelo ator norte-americano. As duas biografias são contadas com imagens capturadas ao vivo de maquetes montadas na hora e de uma série de objetos, jogos, brinquedos e imagens replicadas de dispositivos eletrônicos. Essas imagens são mixadas ao vivo e projetadas em grandes folhas de isopor que, ao longo do espetáculo, servem como tela de projeção e elementos para montar uma casa de uma maquete de proporções humanas.

Foto: Alfred Mauve
Foto: Alfred Mauve

Com esses procedimentos e tendo a música ao vivo como estratégia para estabelecer uma atmosfera de diversão e despojamento, os artistas de BBBB, Alberto Barberá, Alex Serraño, Diego Anido e Pau Palacios, comentam os diversos regimes narrativos (a biografia, a narrativa ficcional, o documentário, a reportagem jornalística, a escrita da história) e imagéticos (o cinema mudo, os filmes dos tempos áureos de Hollywood, a TV dos EUA, o universo lúdico infanto-juvenil) com os quais lidamos no cotidiano. O agenciamento dessas narrativas e imagens, pelo procedimento da montagem, descontextualiza e recontextualiza o que mostra, provocando o olhar e o entendimento do espectador a rever tudo o que vê, a desconfiar das verdades construídas.

A proliferacão de pequenos detalhes técnicos do espetáculo, a quantidade de objetos e de imagens editadas, as numerosas tarefas que os artistas executam e a atmosfera de chiclete Bubble Boom: tudo isso funciona quase como artifício de distração. A peça é construída de maneira a dar a ilusão de que esses diversos dispositivos são a coisa em si, que trata-se apenas de uma dramaturgia de chistes pontuada pelo exibicionismo carismático de virtuosismos performativos e tecnológicos.

Até que as imagens reais da violência da polícia espanhola em atos de desapropriação imobiliária, em que pessoas reais são de fato expulsas à força de suas casas, com violência física perpetrada pelo estado, apontam rapidamente que, embora a peça tenha uma elaboração complexa de construção formal, o teatro que está se fazendo ali é um teatro que está no mundo. As questões da peça não se resumem aos seus próprios procedimentos. A breve duração da projeção dessas imagens e a escolha por colocá-las perto do final da peça são fatores determinantes para não torná-las explicativas. Ao mesmo tempo, elas redimensionam as imagens que vimos anteriormente e subvertem até mesmo o clima descontraído em que a peça enreda os espectadores.

Para encerrar, podemos dar mais um exemplo de como a montagem funciona como operação crítica e nos faz olhar com mais acuidade para as camadas de crueldade no que vemos todos os dias na TV. Não me refiro apenas às imagens literalmente violentas. A inserção de trechos do reality show Extreme Makeover – Reconstrução Total Home Edition (já houve uma versão do programa que reformava a aparência de seres humanos!) evidencia a violência perversa da imbecilização das pessoas, quando um programa criado para vender produtos de reforma, construção e decoração explora a miséria alheia ao forjar um espetáculo de idiotas, que vêm suas casas miseráveis se transformarem em show room de ambientes decorados como parques temáticos.

Com a performatividade festiva do teatro contemporâneo e o perspicaz agenciamento das imagens, BBBB é um comentário rascante e discretamente sombrio sobre o mundo em que vivemos e as ficções que inventam os nossos desejos.