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Da inquestionável utilidade do azul

Crítica da peça Teatro invisível do Matarile Teatro

Cena Contemporânea 2015

 

A peça do grupo Matarile Teatro, de Santiago de Compostela, na Galícia, uma variação de peça-palestra (talvez uma peça-conversa), traz um depoimento em palavras e imagens da atriz Ana Vallés, que também assina a direção e o texto (com Javier Martínez Alejandre), em parceria com Baltazar Patiño, que está na ficha técnica como criador de som, luz, cenografia e como ajudante de direção. O mote disparador da criação do espetáculo é o conjunto de perguntas cretinas que comumente se faz para as pessoas de teatro – pelo visto no mundo todo. São elas: “Por que você faz teatro?”,  “Por que você continua fazendo teatro?” e “Por que você faz teatro dessa maneira?” O “dessa maneira” é o teatro invisível do título, que não faz concessões a expectativas alheias à sua razão de ser.

Essa última pergunta, especialmente, é feita com o (invisível) dedo em riste do pensamento pragmático que defende uma noção utilitarista das coisas, como se houvesse de fato um sentido para a vida em si, uma utilidade comprovada da nossa passagem pelo mundo. A atriz se pergunta por que o teatro deveria ter alguma utilidade, se não questionamos utilidade do amor, da amizade, do azul.

Ana responde rememorando situações e experiências do teatro e da sua vida enquanto artista, contando, entre imagens intermitentes de morte, encontros tão furtivos quanto memoráveis com Kazuo Ohno e Gilles Deleuze, citando filósofos e textos, como o ensaio de Georges Didi-Huberman sobre Pasolini e seu lamento sobre a extinção dos vagalumes, a invisibilidade destes ou a perda da capacidade de vê-los. As referências aos pensadores de teatro aparecem na forma de citações narrativas e visuais, como o espaço cênico que remete a Peter Brook, as imagens de Tadeusz Kantor e a bem-humorada história da viagem à Cracóvia para o enterro do encenador polonês.

Foto: Humberto Araújo.
Foto: Humberto Araújo.

Ana nos apresenta uma espécie de mapa das suas referências e de seus encantamentos, talvez no estilo do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. O agenciamento memorialístico das imagens – trazidas das gavetas de uma mesa de trabalho e produzidas na cena – oferece ao espectador a possibilidade de fazer sua própria costura imprevista, percebendo a irrupção das sobrevivências de suas memórias do teatro – que, sendo de teatro, não são apenas pessoais, como nos prova o espetáculo. Elas encontram ressonância e pertencimento a uma história de vivência tão particular quanto coletiva, que sobrevive ao tempo em larga medida pela passagem oral do conhecimento e da experiência.

Experiência talvez seja uma palavra-chave para uma resposta possível à pergunta sobre a razão de ser do teatro. Ouvimos de muitos pensadores da vida moderna, como Walter Benjamim, e da atualidade, como Jorge Larrosa, sobre a defasagem da experiência na vida urbana contemporânea. Isso se deve à cada vez mais dispersa experiência do tempo e à redução do convívio presencial, com a crescente mediação tecnológica dos meios de comunicação e transmissão de conteúdos. Há expressões que exemplificam essa lógica, como “tempo é dinheiro” ou a ideia mesma de “perda de tempo”. A peça do Matarile Teatro, com sua lida tranquila com o tempo e o valor que dá ao compartilhamento oral da vivência na arte é um exemplo de uma obra  que convida à experiência – e, naturalmente, ao teatro. A criação de Teatro invisível é uma forma – estética e política – que Ana encontrou de cuidar do teatro.

Vale ainda fazer a ressalva de que esse teatro supostamente invisível só não aparece nas narrativas imediatas dos sucessos forjados, que validam a si mesmas por uma visibilidade mentirosa, que têm a durabilidade e a relevância das “notícias culturais” satirizadas pela atriz em determinado momento. Pois é esse teatro invisível que entra para a história, que alimenta o teatro e nos habilita a ver de novo os seus vagalumes – ou simplesmente nos coloca de novo no melhor lugar para vê-los.

Sabemos que a palavra utilidade, usada no título desse breve e apressado texto crítico, não importa para quem faz teatro, amor, amizade ou o azul. Mas está ali como provocação: a presença mesma do azul cancela a utilidade da ideia de utilidade.

Exposição e partilha da condição humana

Crítica da peça Isso te interessa? da companhia brasileira de teatro

Cena Contemporânea 2015

 

“Cada homem traz consigo a forma inteira da humana condição.”

Michel de Montaigne

 

A montagem de Isso te interessa? é parte da proposta da companhia brasileira de teatro de traduzir e encenar peças de autores e autoras determinantes da dramaturgia contemporânea que são inéditos e até mesmo desconhecidos no cenário teatral brasileiro. Até hoje, o grupo realizou montagens de autores como Philippe Minyana, Jean-Luc Lagarce, Ivan Viripaev, Joël Pommerat e, o mais recente, Hanoch Levin – embora seja preciso fazer a observação de que o espetáculo mais contundente do grupo é fruto de uma dramaturgia original, assinada por Marcio Abreu: Vida.

O título da peça em francês, Bon, Saint Cloud, faz menção a um balneário francês para o qual um dos personagens deseja viajar. Não apenas pelo fato de que o público brasileiro não tem Saint Cloud como referência, a opção por dar um novo título à peça de Noëlle Renaude enfatiza a dimensão de leitura da encenação e do projeto mesmo de realização da montagem. A encenação é um depoimento sobre a peça, uma leitura da peça, um gesto que dá forma e voz a um texto prévio escrito em outra língua, em outro contexto cultural. A ideia mesma de tradução ganha ênfase nessa passagem de um título a outro, colocando em jogo a dimensão autoral e de pensamento da tradução, assinada por Giovana Soar e pelo diretor, Marcio Abreu.

A saga familiar apresentada na trama da peça remete à narrativa romanesca, ou seja, ao romance enquanto gênero literário, mas se apresenta de modo bastante teatral na opção da dramaturgia por colocar as rubricas na fala dos atores, unindo o que seriam as indicações de movimentação à fala dos personagens. O endereçamento direto, lúdico e bem-humorado ao público presente colabora para criar vínculo entre atores e espectadores, enfatiza o convívio, a ideia (obvia mas nem sempre evidente) de que os artistas estão querendo falar com os espectadores – o que o título em português já anuncia com clareza.

O cenário em perspectiva, de Fernando Marés, parece fazer um comentário sobre o olhar como um olhar para a arte, uma forma de ver que é característica da arte, uma vez que a perspectiva é uma elaboração formal, uma técnica de representação do espaço em um quadro. A iluminação escura de Nadja Naira, sua aposta firme na penumbra como tom geral da visualidade da cena, cria – em sintonia fina com a trilha sonora de Moa Leal e Marcio Abreu – uma atmosfera melancólica em contraste com o anseio por uma vida solar em um lugar amplo e arejado como a idílica ideia de Saint-Cloud.

Foto: Junior Aragão.
Foto: Junior Aragão.

O trabalho dos atores Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini faz uma decupagem das camadas de enunciação da atuação no teatro. A transição sem quebras entre personagem e narrador constrói um registro que contém em si todas as possibilidades: a demanda da peça é por um ator em estado de prontidão, livre de psicologismos e de construções corporais que buscam mimetizar corpos fictícios. As atuações colocam em jogo o banal da vida cotidiana nos diálogos e situações das personagens em oposição às intensidades e variações de temperatura no tratamento dado às falas dos atores, que muitas vezes revelam mais “as intenções” dos personagens nas falas narrativas que nas falas dialógicas.

Todo esse conjunto de escolhas formais e preparo técnico viabilizam uma convivência entre observação crítica e identificação emocional por parte do espectador. Ao mesmo tempo que a artificialidade da encenação nos oferece algo a se pensar sobre, a opção radical pela nudez sem rodeios dos atores nos convida a uma identificação com a humanidade dos personagens.

A nudez pode ser vista como um traço da via pictórica da encenação, afinal o nu é objeto de estudo da beleza e do humano na pintura e na escultura desde a Antiguidade Clássica e que, no teatro brasileiro, costuma ter um tratamento completamente diverso daquele que vemos em Isso te interessa? A beleza e a solidão da nudez, a complexidade e a singularidade desse organismo que é o corpo humano, fazem dessa escolha improvável um artifício de precisão cirúrgica para dar a ver e escutar uma narrativa que mostra nossa tendência a repetir comportamentos e hábitos como um coletivo animal. Por um lado, nos parecemos enquanto corpus social e cultural, mas por outro, somos absolutamente únicos e solitários em nossos corpos biológicos perecíveis. A nudez nos iguala e nos resume enquanto espécie na mesma medida que nos individualiza.

A nudez em Isso te interessa? nos olha e nos agarra, fisgando-nos pela consciência da partilha da nossa bela e comovente humana condição.

O mito da proximidade e o desequilíbrio de conjunto

Crítica das peças Morrer de amor, segundo ato inevitável: Morrer e Matando o tempo, primeiro ato inevitável: Nascer, de Jorge Hugo Marín.

MITsp 2015

Neste texto, pretendo falar sobre os dois espetáculos do grupo colombiano La Maldita Vanidad apresentados no contexto da MITsp: Morrer de amor, segundo ato inevitável: Morrer e Matando o tempo, primeiro ato inevitável: Nascer.

Coloca-se um problema para a crítica quando as questões técnicas falam mais alto que as propostas artísticas. Quando o projeto se materializa com toda a sua potencialidade, ou pelo menos com boa parte dela, podemos conversar com a obra, experimentar uma escrita codiscursiva, que de algum modo se quer criativa ou propositiva. Quando isso não acontece, a crítica fica limitada a falar sobre as escolhas formais, tentando entender a fenda entre a intenção e a realização. Assim, começo este texto correndo o risco de escrever a crítica mais chata de toda a Prática da Crítica da MITsp, exercendo um tipo de crítica que geralmente não me interessa ler nem fazer. Ou seja, vou me arriscar a cair na crítica-polícia.

Uma das questões que se apresenta nas duas peças do grupo La Maldita Vanidad é o uso do espaço não convencional como algo essencial ou constitutivo das obras. Aqui podemos identificar algumas confusões. A primeira, que é só um detalhe, é ainda tratarmos esses espaços outros para além do edifício teatral de “não convencionais” quando a realização de peças em casas e apartamentos já é uma prática estabelecida, tem até seus próprios festivais, premiados e patrocinados com dinheiro público. Ou seja, não são mais tão não convencionais assim. Vemos até mesmo o quanto essa prática já tem os seus clichês.

Mas a confusão problemática que identifico neste caso específico e que também aparece nas críticas a Morrer de amor é o mito da proximidade, a crença de que a proximidade física insere ou provoca uma espécie de fusão entre ator e espectador, ou, ainda, que enfatiza a dimensão de convívio. Não é bem assim. Para que aconteça algum vislumbre de fusão ou para que se enfatize o convívio, é necessário um trabalho muito mais complexo de elaboração formal da dramaturgia e das atuações do que a mera instalação das cadeiras da plateia a poucos centímetros das cadeiras do cenário.

No caso específico destes dois trabalhos, o espaço dito não convencional não interfere na poética do espetáculo, pois eles parecem ter sido criados com premissas bastante convencionais do palco italiano.

As atuações, por exemplo, tendem ao histrionismo, pois há um trabalho de composição de personagem calcado nos trejeitos e na fisicalidade. Os gestos e reações são marcados, sublinhados, enfatizados. Há um excesso de composição característico da distância. Isso acontece em maior ou menor grau entre os atores e entre as duas peças, mas não consigo identificar um trabalho de hiper-realismo, que, segundo li em algum lugar, faria parte da pesquisa do grupo. Na primeira peça, até a movimentação dos atores caberia perfeitamente no palco italiano, porque favorece a frontalidade. Quem está na lateral, por exemplo, vê a peça de lado. E me pareceu que os atores estavam sempre preocupados em não ficar de costas para o maior número de pessoas possível.

Foto: Juan Carlos Mazo.
Foto: Juan Carlos Mazo.

No que diz respeito à dramaturgia, também podemos identificar uma filiação ao palco italiano – o que não considero, em hipótese alguma, um mal, apenas uma contradição nesses casos particulares. Me parece que o grupo opta pelo drama – e vamos combinar que o desenlace que se quer surpreendente ou a presença de desgraças na trama não transformam o drama em melodrama, nem em novela. Melodrama é outra coisa. Novela é outra coisa. Nesta opção pelo drama, as peças do grupo, pelo que pude entender, servem à ideia de passar uma mensagem, ou seja, querem comunicar alguma coisa, fazer uma denúncia, expor uma situação. Nesse contexto, a proximidade física, assim como o uso do espaço que não é um palco, podem não passar de fetiches – ou de mitos.

No drama, há uma demanda de clareza, de foco, de causalidade. Em Morrer de amor, a dramaturgia realiza a sua proposta, ou seja, passa a sua mensagem. Depois da peça, o assunto das conversas é o tema da intolerância e da homossexualidade: missão cumprida. Talvez uma missão modesta demais, poderíamos dizer, para o contexto da MITsp, mas depois voltamos a isso.

No caso de Matando o tempo, o barroco da dramaturgia, a profusão de desejos de criar tantos personagens, de expor tantas variações de comportamento, tantos pequenos casos e subtramas e narrativas prévias, acaba por ofuscar o que era a intenção do drama: revelar a diferença de classes a partir da figura da empregada doméstica. Mas a encenação delega tudo à narrativa e aposta todas as suas fichas numa conclusão epifânica ao final da peça. E essa conclusão, a meu ver, não se materializa. E não se materializa principalmente porque ela não foi construída no corpo dos atores, não foi construída cenicamente, está apenas levemente apontada na acepção literária do discurso da peça, ou seja, na informação veiculada nos diálogos. Não vejo diferença de classes no corpo dos personagens, por exemplo. São corpos de jovens atores, não são corpos de aristocratas, nem de proletários. Todos têm o mesmo corpo: não há tensão real, palpável, visível.

Ao contrário do que geralmente se diz, o drama não é “só um drama” – como se fosse muito fácil fazer o drama acontecer. Rejeitar o drama pelo drama é tão conservador e ingênuo quanto conceber o drama em 2015 como se nada tivesse acontecido nas artes desde antes do início do século XX. Mas, para o drama ganhar corpo e fazer sentido, especialmente num momento histórico do teatro em que o gênero passou por tantos atravessamentos, e chega a ser alvo de tantos ataques, a demanda de elaboração formal da encenação e das atuações é muito maior do que se imagina. O drama demanda rigor e coerência. Para fazer o drama, é quase preciso defender o drama – com trabalho e técnica, não com discurso. Para nos arriscarmos em formas tradicionais, precisamos ser ainda mais diligentes com a técnica e mais insubordinados com os mitos e fetiches.

E, então, para começar a concluir, penso que se é um desejo do grupo falar sobre esses assuntos, nesses termos e dessa maneira, no contexto em que vive e trabalha, não cabe à crítica questionar o projeto. Mas questiono, de fato, a presença das duas peças em uma programação de espetáculos cujas poéticas são tão arrojadas, mesmo com tantas diferenças. É estranho ver o díptico colombiano ao lado de trabalhos como Woyzeck, A gaivota e Stifters Dinge.

Sempre falo da necessidade da cumplicidade na crítica, acredito mesmo que críticos e artistas devem ser parceiros artísticos. Falamos sobre isso na oficina ministrada pelos integrantes da DocumentaCena na programação da MITsp. Mas cumplicidade não é sinônimo de adesão incondicional. Apesar de falar dos problemas, esta não é uma crítica contra a peça. Não seria cúmplice da minha parte passar a mão na cabeça, justificar os problemas do espetáculo com os percalços práticos de produção, comuns em turnês internacionais, e dizer “ah, como são jovens, ainda estão aprendendo.” Eu também sou jovem, eu também estou aprendendo e detesto quando me tratam dessa maneira. A crítica cúmplice não é a crítica hipócrita, muito menos a crítica paternalista.

Julia do XXI ao XIX

Crítica da peça Julia de Christiane Jatahy

MITsp 2015

É sempre um problema escrever sobre uma peça que está circulando há algum tempo. Depois de tanta coisa que foi dita e escrita sobre Julia, fica o questionamento (um questionamento para a crítica, em todas as ocasiões): como não chover no molhado? O que não foi dito sobre Julia? Ou: será o caso de falar sobre o que já foi dito?

Superado o bloqueio inicial, três pontos se apresentam como pequenas reflexões. O primeiro, a questão da lida com um material prévio, uma questão do teatro por excelência. É um clichê da crítica tratar o enfrentamento de uma encenação com um texto prévio pela comparação, o que é sempre feito sob um pensamento massacrante e conservador de que o “original”, ou o passado, é sempre um ideal a ser alcançado, um monumento da tradição. Ou ainda, conferir se a “adaptação” ou a “atualização” é eficaz. Diante de Julia, de Christiane Jatahy, vejo uma nova criação – e não acho que seja o caso de compará-la ao texto de Strindberg. Me parece que a peça conversa abertamente com Senhorita Julia, se coloca frente a frente com ela. E o que Julia, do século XXI, pode dizer para Senhorita Julia, do final do século XIX? O olhar da encenação é um olhar de enquadramentos, emolduramentos, recortes. Não me interessa questionar se a interação entre teatro e cinema “funciona” ou não. Me interessa pensar: A partir do fato de que isto é feito desta maneira, o que produz? O que o foco no rosto da personagem Julia produz? O que o seu olhar mediado pelo dispositivo cinematográfico nos diz?

Foto: Steven Gunther / Calarts.
Foto: Steven Gunther / Calarts.

Uma resposta é que o olhar não é dos personagens, mas dos dos atores – e aqui aparece o segundo ponto. O dispositivo cinematográfico criado pela encenadora e por Marcelo Lipiani somado à linguagem das atuações de Rodrigo dos Santos e Julia Bernat me faz ver que há, ao longo de toda a peça, um depoimento dos artistas envolvidos sobre as questões em jogo. Não me refiro aos momentos em que a ideia de depoimento é levada ao pé da letra, mas a pontos mais sutis da linguagem do espetáculo. O momento de acusações ferozes entre os personagens, em que os preconceitos aparecem em palavras duríssimas, revela melhor o depoimento pessoal de cada artista na dificuldade visível que eles têm para lidar com aquele diálogo do que nos comentários que fazem diretamente para a plateia em seguida. A meu ver, todo o dispositivo de recorte e de dobra das imagens em Julia constrói uma distância entre o discurso dos personagens e o discurso da peça. O discurso da peça é um discurso crítico – mas não simplesmente porque pensa sobre a forma como os personagens se comportam, mas especialmente na medida em que destrincha os problemas apontados naquela situação.

Para além da diferença de classes que falava mais alto na peça de Strindberg, Christiane Jatahy acrescenta uma colocação sobre a separação cultural e social entre negros e brancos num país fundado sobre uma cultura escravocrata que ainda corre nas veias das cidades – longe de ser apenas no Rio de Janeiro. Parece que muito foi dito sobre isso. No entanto, no debate depois da peça, proposta dos Diálogos Transversais, Luciana Romagnolli apontou a visibilidade da questão de gênero, que talvez fique escamoteada. Esse é o terceiro ponto, e talvez o mais importante.

Não seria o caso de vermos, em Julia, um enquadramento da questão de gênero quando, por exemplo, durante o sexo, a câmera revela o constrangimento incrédulo no rosto da menina ao dar-se conta de que está sendo comida por um babaca? Que de repente está sendo tratada como um degrau num projeto de ascensão social oportunista, ouvindo um discurso egoísta bizarro enquanto é penetrada? Ou quando a atriz diz algumas frases como se a personagem estivesse repetindo falas que aprendeu em algum romance de banca de jornal, como “agora beija o meu pé”, “beija a minha mão”, “manda em mim”? A autoridade forçada sobre a mulher não aparece o tempo todo? A submissão forçada da mulher, e da mulher jovem, não é uma questão tanto quanto a submissão forçada do empregado, e do empregado negro?

E então refaço a pergunta: O que as Julias do século XXI têm a dizer para as senhoritas Julias do final do XIX? E vice-versa? E o que será que a Senhorita Julia de Katie Mitchell e Leo Warner vai nos dizer sobre isso?

As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

Crítica da peça As irmãs Macaluso, da encenadora italiana Emma Dante

MITsp 2015

Pode-se dizer, com convicção e com razão, que As irmãs Macaluso, de Emma Dante, é uma peça sobre relações familiares, sobre o lugar da mulher no contexto cultural da Sicília, sobre a vida e a morte, ou ainda sobre a condição humana. A aparente simplicidade da encenação e o conteúdo prosaico das falas são estratégias criativas do espetáculo que oferecem ao espectador a possibilidade de ver a peça a partir de diferentes recortes temáticos dentro de um círculo de grandes questões humanas. Arrisco dizer, no entanto, nesta breve reflexão feita no calor da hora, que esta também é uma peça sobre a beleza – e sobre a beleza pictórica. Continue lendo As Irmãs Macaluso: o belo, a vida e o pictórico

Nós, os curiosos

Crítica da peça Recusa, da Cia Teatro Balagan

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda.  O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que –  mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

Tubo de ensaio

Crítica da peça Metrópole, da Inquieta Cia. de Teatros

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2014

 

Formada por artistas egressos da graduação de Artes Cênicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a Inquieta Cia. de Teatros apresentou Metrópole na Sala de Ensaios do Centro Cultural São Paulo, no contexto da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. O espetáculo foi concebido para se apresentar em espaços com esse caráter e aproveita de modo interessante a parede coberta de espelhos, especialmente no que diz respeito ao poucos movimentos de luz, feitos apenas com uma lanterna e alguns desenhos no espelho. Os espectadores se vêem refletidos ao longo de toda a peça e podem observar-se ou observar os demais enquanto a cena se desenrola. Essa estratégia, que faz o espectador dar-se conta de si mesmo o tempo todo, encaixa a experiência em um lugar de expectativa moderada. Nos vemos inseridos em um contexto de experimentação, estamos todos na sala de ensaio, como se fôssemos cobaias-cúmplices.

No encontro de intercâmbio entre grupos, os integrantes se apresentaram como um grupo de origem acadêmica, que se encontrou na faculdade de teatro e começou a trabalhar a partir desse contexto. Não é um grupo iniciante, mas talvez seja o grupo mais jovem no contexto da Mostra. Isso aparece no espetáculo em alguns aspectos, como na lida com o trabalho do ponto de vista técnico e do ponto de vista temático.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Do ponto de vista técnico, parece que há uma ansiedade com o próprio fazer teatral que em alguns momentos acaba ficando na frente, aparecendo mais do que o trabalho em si. A intensidade que aflora nos corpos de Silvero Pereira e Gyl Giffony (que também assina a direção) em muitos momentos fica em primeiro plano. Isso pode ser uma opção estética, mas ficou a impressão de que os artistas poderiam regular a voltagem pra dar a ver mais nuances, mais delicadezas. O excesso de energia no trabalho atorial pode se confundir com uma limitação técnica. A fricção entre os dois personagens e a proximidade com os espectadores produz um calor interessante, mas o trabalho acaba contando demais com isso. É como se o vigor fosse mais de juventude que de elaboração poética.

Do ponto de vista temático, dos assuntos abordados e dos enfrentamentos da dramaturgia de Rafael Barbosa com o material reunido para a produção do texto, a peça esbarra nesse lugar da pesquisa incipiente. O entendimento do que é a opção pela vida na arte às vezes parece um pouco romântico, como se tudo fosse 8 ou 80. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra – poderíamos dizer. A persistência demanda concessões e recusas em uma justa medida. É possível construir um lugar de criação artística para si enquanto ainda se ganha o pão com outros meios. Nos debates realizados na Mostra, a viabilidade econômica da continuidade dos grupos, a necessidade de ter uma sede, uma regularidade, foram assuntos importantes. É interessante ver que o grupo colocou isso em jogo na própria criação. Nesse sentido, imagino que o espetáculo tenha uma empatia imediata com o público de jovens e jovens adultos, especialmente entre espectadores que lidam com esses questionamentos no seu dia a dia. E a empatia com o público jovem no teatro não deve ser subestimada.

A peça começa com um prólogo impactante, numa referência ao universo de Caio Fernando Abreu, cheio de fantasia e brilho. Depois, o acender das luzes revela a crueza da realidade. Essa discrepância entre um falso glamour das iludidas do prólogo e a realidade maçante do trabalho braçal do rapaz que desistiu da vida artística apresenta de maneira econômica uma ideia geral de uma imagem possível do lugar do artista: uma mistura de fantasia e realidade, de epifania e dureza.

Fica a curiosidade de conhecer outras peças do grupo, para enxergar o seu trabalho em um contexto mais amplo, e o desejo de ver o que os integrantes da Inquieta Cia. de Teatros estarão fazendo daqui a alguns anos.

Transfiguração da carne

Crítica da peça Carnes tolendas, do Grupo Banquete Escénico, de Córdoba

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Destas Carnes tolendas, poderíamos fazer diversos cortes. O trabalho do grupo de Córdoba oferece, como anuncia seu nome, um banquete de possibilidades para a cena. Como numa refeição completa, a peça oferece entrada, salada, diferentes pratos, com temperos variados, sobremesa e aperitivo(s). A dramaturgia – assinada pela diretora María Palacios e pela atriz Camila Sosa Villada – é heteropoética, ou seja, as regras mudam a cada cena, que é ora depoimento, ora citação, ora comentário, deslizando do mimético ao performativo numa dinâmica que de tempos em tempos vai renovando o pacto com o espectador.

Foto: Juan Manuel Alonso.
Foto: Juan Manuel Alonso.

A imagem da atriz, seu corpo, sua voz e sua presença nos convidam a entender o seu organismo complexo, que supera a oposição entre homem e mulher e constrói um lugar de beleza da convivência entre masculino e feminino. A dimensão confessional do trabalho aparece tanto no corpo de Camila quanto na construção do texto e na encenação. Dos poucos objetos utilizados na cena, alguns fazem o papel de ponte com o real, são vestígios da história pessoal da atriz. E o desenho do seu corpo na visualidade da cena remete às mudanças que ela propôs a si mesma no processo de travestimento: ela se contorce, se provoca o desequilíbrio, se revira como se procurasse a identidade do lado do avesso.

Mas o recorte específico que proponho aqui, rapidamente, é a relação criada com os textos de Federico García Lorca. Alguns trechos de peças do poeta e dramaturgo espanhol são citados no espetáculo. As mulheres de Lorca são colocadas em situação de espelhamento com a condição complexa do corpo de Camila. A maternidade, tomada pela sociedade em que vivemos como o alfa e o ômega da realização de ser mulher, é uma impossibilidade para personagens com Yerma e D.Rosita, assim como para Camila. E esse “assim como” é um certo nó.

O discurso de Yerma sobre seu ventre seco ganha contornos angulosos na voz de Camila. A ideia de esterilidade é aqui subvertida, transfigurada. Por transfiguração entendo uma alteração de estatuto, uma passagem incomum – lembrando que o termo é usado tanto no contexto religioso (a Transfiguração de Cristo) quanto na teoria da história da arte moderna e contemporânea (a transfiguração do lugar comum no pensamento de Arthur Danto). O corpo travesti (e em uma medida mais profunda, transexual) faz uma revolução sobre si, explode um novo gênero na própria carne e dá à luz uma mulher feita. Uma transfiguração.

E todo esse processo traz em si uma teatralidade particular. Carnes tolendas me parece falar dessa teatralidade de ser homem, de ser mulher e de estar em um mundo que insiste em dar as regras de uma dramaturgia clássica. O travestimento tem uma teatralidade na vida. Colocá-lo em cena, como questão e como condição, dobra a teatralidade do corpo e desdobra nosso entendimento do mundo.

Acúmulo e esvaziamento

Crítica da peça Dois amores e um bicho, do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott, montagem da Cia Experimentus

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Uma característica que me chama a atenção no texto do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott é a complexidade das imagens que sugere. Trata-se de uma peça que tem algo a dizer e esse algo está na articulação do que os personagens dizem, não no conteúdo literal das suas falas. É nesse ponto que o texto pode ser considerado difícil de encenar. A demanda de recursos técnicos e de habilidades para a criação de uma poética para a sua encenação não é a mesma demanda da encenação de um texto dramático comum. A estrutura da dramaturgia proporciona um acúmulo de camadas de narrativas e de pontos de vista que demandam um posicionamento por parte da criação do espetáculo. Uma espécie de posicionamento poético – uma ideia que mereceria um aprofundamento que não cabe neste texto, mas que podemos guardar para outra ocasião.

A encenação de Daniel Olivetto proporciona diversas formas de distração ao longo do espetáculo: a música constante – em tantos momentos mais audível que a voz dos atores, especialmente no caso de Jô Fornari -, a movimentação inquieta, os comentários feitos pelos gestos e expressões nos rostos dos atores a cada fala. O excesso de apelos à visão e à audição atravancam um pouco o apelo ao entendimento intelectual, à escuta profunda dos questionamentos da peça, que não são poucos.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

De modo geral, o tratamento dado às questões assume um tom propositadamente frívolo, que talvez provoque um embaçamento da seriedade dos temas abordados. É possível apontar como exemplo dessa abordagem o conflito da mãe (interpretada por Sandra Knoll) para com o pai (Marcelo F. de Souza), que é posto em cena como uma mera briga de casal. No entanto, acredito que há ali uma confrontação de princípios: a partir de determinado momento, a mulher passa a ver no marido uma imagem que estava submersa, escondida pelos afazeres da vida cotidiana e pela responsabilidade de criar uma filha. A passagem da filha para a vida adulta provoca uma abertura no olhar da mãe – e a virada na narrativa.

E me parece ser exatamente na elaboração da imagem do homem, do pai, que o texto apresenta sua maior complexidade e a encenação, o seu calcanhar de Aquiles. A montagem da Cia Experimentus apresenta um homem que se comporta como uma criança, enquanto o ponto nevrálgico da peça é que os atos deste homem são os atos de um homem, adulto, responsável: um pai de família, como dizem. Apresentar a figura do pai como um bobo, como um homem infantilizado e inconsequente, é uma forma de “resolver” o problema sem de fato enfrentá-lo. O apelo ao histrionismo e a tentativa de fazer humor reiteradas vezes ao longo da peça são formas de varrer o problema para debaixo do tapete.

A opção da direção, que faz com que o ator “defenda” o personagem, querendo que ele seja querido, engraçado, provocou um curto-circuito na minha percepção. Me pareceu que o discurso do personagem ficou colado com o discurso da peça, quando o discurso da peça, a meu ver, seria um comentário – e um comentário duro – sobre o discurso e o comportamento do personagem. Por exemplo, quando o pai chama o cachorro de “viado”, o ator o faz como se isso fosse uma piada. E o que o texto de Gustavo Ott me parece dizer é que isso não só não é uma piada, como é uma forma de violência. Isso mata. Mata por contaminação, como um mal que se espalha de tal modo que seus meandros são difíceis de detectar. Mas as consequências são bastante visíveis. E devastadoras, como Ott nos mostra com a exterminação dos animais do zoológico.

O que a montagem da Cia Experimentus me faz questionar, com relação à feitura de uma peça de teatro, é o quanto o pensamento sobre o que se diz, o pensamento sobre a ética dos conteúdos, precisa encontrar recursos técnicos coerentes com sua proposta. Não basta à encenação providenciar um emolduramento confortável, bonito e divertido para apresentar determinados personagens e situações. É preciso, no caso do enfrentamento de um material como o texto de Ott, encontrar uma poética específica para uma enunciação crítica, uma poética que comenta, que descola. Sob o risco de se afirmar o que se quer criticar.

Para concluir, vale apontar a ótima escolha do texto pelo grupo de Itajaí, tendo em vista a rara colaboração entre autores e grupos do Brasil com os países vizinhos da América Latina, e que conta com o mérito da tradução fluida e coloquial de Marialda Gonçalves Pereira.

Presença e oralidade na escrita da história

Crítica da peça Galvarino, do grupo chileno Teatro Kimen

IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O trabalho apresentado pelo Teatro Kimen, do Chile, oferece questões que têm me interessado particularmente – e não somente a mim, pelo que posso perceber, principalmente pelas pesquisas cênicas e teóricas de pesquisadores em São Paulo: as interferências do real na cena. Mas o que mais me desperta o interesse é ainda o outro lado da moeda: as interferências da criação artística na percepção do real, ou mais especificamente, como o teatro documentário, em suas diversas e muito variadas possibilidades criativas, nos apresenta uma possibilidade interessante de escrita da história ou de articulação de um outro saber histórico. Este outro saber histórico não é aquele de nomes e datas, nem o das grandes narrativas de impérios, conquistas, independências, nações, guerras mundiais e lutas de classes. Trata-se de um saber que vem do compartilhamento de experiências que não decorrem de simples histórias pessoais, mas de vivências de seres humanos que se inscrevem em um contexto mais amplo, que podem nos fazer vislumbrar situações políticas, econômicas, sociais e históricas, a partir de pontos de vistas que um livro ou um filme simplesmente não dão conta.

Se fosse o caso de me estender no assunto, recorreria às proposições teóricas do pesquisador argentino Jorge Dubatti sobre a ideia de convívio no teatro, que estabelece uma diferença nuclear na experiência da recepção teatral. Acredito que a natureza da “transmissão” de um saber histórico numa situação de convívio proporciona uma apreensão de natureza diferente. Mas, como a proposta desta crítica é colocar, em um intervalo curto de espaço e de tempo, algum recorte possível, vou me deter em outra mirada – que está também fundamentada no acontecimento teatral como uma situação de compartilhamento do espaço e de uma co-presença de todos os envolvidos, artistas e espectadores.

Foto: Danilo Espinoza Guerra.
Foto: Danilo Espinoza Guerra.

Arrisco dizer que uma possível tendência do teatro documentário contemporâneo feito na América Latina é a presença do corpo como evidência, como documento, vestígio de uma realidade que não está mais literalmente no presente, mas cujos rastros se pode vislumbrar nestes corpos que trazem em si, na pele, no sangue, na língua, o saber histórico vivido. Galvarino pode ser considerado um exemplo dessa prática. A atriz Paula González Seguel, que também é diretora da peça, assume a voz de sua tia na vida real, Marisol Ancamil, a irmã do personagem ausente que dá título à peça. Galvarino fora estudar e trabalhar na Rússia e seu desaparecimento motivou a criação do espetáculo. Mas não foi só o desaparecimento do irmão que causou a angústia da família: o descaso das autoridades chilenas, que poderiam ter colaborado para localizá-lo antes de sua morte, causada por um ataque xenofóbico, é o que dá o tom de denúncia e amplia o espectro de relevância política do espetáculo.

Paula Gonzalez traz no corpo o sangue da família que implora pelos restos mortais do parente perdido. Soma-se a isso a presença do casal mapuche no papel dos pais. Eles não são atores, não estão ali para cumprir mais uma etapa de suas carreiras. Estão ali como pessoas cujos corpos carregam uma cultura, evidenciada nos breves diálogos, em que falam a língua original dos mapuche. A oralidade também é uma questão a ser pensada nesta breve tentativa de levantar possibilidades de uma escrita da história no teatro documentário, aspecto que aparece no espetáculo quando Paula lê as cartas enviadas ao Ministro das Relações Exteriores e que ganha corpo quando ela se dirige a ele falando diretamente ao público presente. A canção que Elsa Quinchaleo nos oferece é mais um sinal dessa força de presença que nos dá a ver não apenas uma história real, ou uma história familiar, mas nos permite conhecer uma face singular da história do Chile. Estaríamos, com essa noção de teatro documentário, escrevendo (com Walter Benjamim) uma história a contrapelo?