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Formas para a transgressão e a reintegração

Crítica de Notas de Cocina, do grupo Teatro do Embuste, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

No acúmulo das cenas de “Notas da Cocina”, o grupo colombiano Teatro do Embuste segue linhas do texto do dramaturgo argentino Rodrigo García para percorrer alguns dos desvios do desejo numa sociedade de capitalismo tardio, cujo imperativo consumista, em tensão com a extrema desigualdade econômica, produz aspirações de ostentação para distrair do vazio da experiência cotidiana. Ícones mais ou menos decadentes dessa high society, como Eike Batista ou o restaurante Fasano, apontam para um modo de vida reconhecível no imaginário do brasileiro, arrolados num discurso cênico modalizado pelo cinismo.

A atitude de desprezo pelas convenções sociais e morais gera uma sequência desconcertante logo de início: a mãe que, para proteger a filha da mediocridade padronizadora do sistema de ensino, embebeda-a antes de ir à escola. A presença de uma criança como rastro do real em cena tensiona ainda mais uma construção ficcional que, em si, já é conflituosa pelo choque entre a razão crítica e o despautério. Esse impasse abre uma primeira indagação possível de ser formulada a partir do trabalho: qual a potência política do cinismo como crítica social?

Esta pergunta se reforça no contexto em que o espetáculo é apresentado no Brasil, integrando a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, cuja curadoria propõe um olhar para dramaturgias transgressoras sob o mote “A Esquerda do Sol: poéticas e políticas Latino-Americanas”. E a ela não se pretende, nesta crítica, dar uma resposta conclusiva, senão ensaiar alguns apontamentos.

O cinismo seria uma distorção estilística correspondente, na linguagem, ao diagnóstico de uma distorção na forma de vida contemporânea em relação às expectativas sustentadas pelas normas sociais. Entre as muitas reflexões apresentadas por Vladmir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica”, consta a ideia de que o padrão de racionalidade de nossa sociedade, no atual estágio do capitalismo, seria o do cinismo. O modo cínico de operação estaria relacionado a uma sociedade em processo de “crise de legitimação”. “Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”, diz. Um ponto interessante da argumentação do autor é que, na chave cínica, não só o sistema de lei, mas também a própria transgressão, são anunciados como normativos.

Pensando isso em relação a “Notas de Cocina”, interessa observar as transgressões àquilo que se estaria criticando à primeira vista. Tal como o disparatado embebedar da criança contra o sistema de ensino, há o casal que desafia os salamaleques gastronômicos de um restaurante de luxo comendo, enquanto bebe a champagne mais cara da casa, uma porção de batatas fritas trazidas de algum boteco. Está clara a provocação contra ambições sociais que são como balões de ar, invólucros de pouco ou nada.

Então as transgressões recaem em outro extremo da estupidez (pelo vazio) da conduta humana. O cinismo seria esse lugar da falência da crítica? O espetáculo aponta para o insustentável desses desejos fúteis, debocha deles; ao mesmo tempo em que os absorve na ironia sobre a indignação, talvez ela mesma um modo de satisfação das angústias derivadas da falta de autenticidade, significado ou experiência que legitime nossos modos de viver.

O comercial da marca de jeans que se apropria de imagens e discursos de protesto para vender seu produto vem atestar que nada sobra como potência crítica. É uma posição indubitavelmente defensável, embora atinja o solo brasileiro justo no momento em que, ante uma hipocrisia generalizada, a potência crítica apareça rediviva pela força da mobilização política estudantil. Tempo e geografia estão sempre a interferir nos sentidos e afetos produzidos por um acontecimento teatral.

Há outro desdobramento para essa discussão, que surge da reflexão à luz da obra de Rodrigo García. Longe de querer atar um espetáculo ao texto do qual partiu, cabe pensar o que distintas escolhas no modo de apropriação geram em termos de efeito.

Em peças como “Gólgota Picnic”, apresentada no Brasil em ocasião do FIT-BH 2012 e da MITsp 2014, García concebe dramaturgias transgressoras dispostas a deslocar o espectador de sua zona de conforto e criar rupturas na percepção, desestabilizando sentidos, provocando reações físicas, sensoriais, emocionais, intelectuais. Isso se constrói numa intrincada rede de imagens e discursos que não convergem para um ponto pacífico, antes criam nódoas, furos, abalos na experiência de quem está na plateia e precisa redescobrir os modos de se relacionar com o que o palco lhe oferece. Determinante, para isso, tanto quanto essa forma polissêmica de tensão entre linguagens, é a postura dos performers, numa espécie de distância crítica em relação aos conteúdos expressos e ao público.

A criação do Teatro do Embuste dispensa o maior investimento em uma camada imagética e recorta o texto, concentrando a dramaturgia em cenas que apresentam situações de conflito. Estas são representadas pelos atores com um reforço na composição de personagens, o que se vê pelos figurinos, registros vocais e virtudes de interpretação distintas da fluidez performativa de encenações de García.

A opção do grupo colombiano é por um tratamento mais dramático, ainda que em sua forma expandida e fraturada, afinal, estão em cena elementos de uma gramática teatral contemporânea, como o vídeo e o skype, a irrupção do real nas participações da criança e de um cachorro (notadamente bem adestrado) e o trânsito dos espectadores por lugares de figurante ou testemunha. Disso resulta, talvez, uma postura menos transgressora, que, se não fura o tecido social do qual debocha, a seu modo esgarça-o, cria dobras, enquanto busca a adesão do público por meio da identificação, do gesto relacional e do humor.

 

O humor de um teatro cínico

Crítica da peça Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste

II Bienal de Teatro da USP

Em 1988, circulou no Brasil uma propaganda dos publicitários da conhecida agência W-Brasil (aquela da canção do Jorge Bem) para o jeans Staroup intitulada Passeata. Jovens vestindo calças jeans da referida marca fugiam da polícia que tentava dispersar uma passeata. Em câmara lenta, os policiais tentavam agarrar os jovens – sim, pelas calças. Tudo isso ao som de uma valsa de Strauss, composta logo depois que ele saiu da prisão, onde esteve por conta de suas composições revolucionárias. Era recente a abertura democrática no Brasil e a memória de passeatas remetia imediatamente aos anos de ditadura das últimas décadas. O comercial ganhou o Leão de Ouro em Cannes, entre outros prêmios. Um de seus criadores é Washington Olivetto, marketeiro famoso por campanhas emblemáticas da história da TV brasileira, como o Garoto Bombril e a frase “o primeiro sutiã a gente nunca esquece”. O outro é Nizan Guanaes, diretor de marketing da campanha de reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998 e sócio do marketeiro da eleição de Lula em 2002, Duda Mendonça. Tinha uma vaga memória dessa propaganda quando me deparo com ela em uma peça de teatro em São Paulo, em um momento em que a polícia está novamente agredindo estudantes pelas ruas – sim, em pleno 2015. A história do Brasil é cínica – e feita de propaganda.

Notas de cozinha, do grupo colombiano Teatro Del Embuste, fez apresentações no Tusp por ocasião da II Bienal de Teatro da USP. A peça, encenação do catalão Marc Caellas a partir de um texto do argentino Rodrigo García, apresenta o percurso de três personagens por diferentes situações que apresentam clichês da vida urbana na atualidade e desejos fúteis de uma sociedade orientada pelo consumo do status. Não há continuidade narrativa entre uma e outra cena, mas a continuidade estabelecida pelos códigos de atuação gera um acúmulo interessante entre as cenas. Primeiro porque geralmente, nesse tipo de peça (em que não há uma narrativa, um cosmo fictício e que tem um desejo de denunciar questões sócio-econômicas do mundo contemporâneo), os atores e atrizes se esforçam por negar a ideia de personagem, enfatizando que eles estão ali com a sua persona de artista, assumindo os discursos na primeira pessoa – mesmo quando o texto é declaradamente de outra pessoa, o autor ou autora de um texto muitas vezes previamente escrito.

A ideia de que temos personagens passando por aquelas situações parece parodiar o gênero drama de estação, que conhecemos por peças de August Strindberg como O Caminho para Damasco e O sonho, ícones de uma ideia de teatro sério, denso, intenso, que pode proporcionar grandes atuações, daquelas que fazem atores ganharem prêmios – situação que é alvo de crítica em uma das cenas da peça. O elenco formado por Hernán Cabiativa, Matías Maldonado e Martha Márquez não se esforça por fazer seus personagens com a carga de seriedade e a demanda de coerência características de formas como o drama, por exemplo. É quase uma paródia da ideia de fazer personagens. Não haveria como questionarmos se eles estão “fazendo bem” ou se nós “acreditamos” neles. Nada disso importa. Mas é interessante quando artistas de teatro misturam as convenções e suas formas. As poéticas contemporâneas também têm as suas convenções, também sofrem ação do tempo da mesma maneira. A paródia também aparece no título. Notas de cozinha é o título de uma publicação dos cadernos de Leonardo da Vinci em que ele anotava receitas para grandes banquetes.

No drama de estação, um personagem passa por diferentes quadros, encontrando outros personagens, outras situações, como se essa espécie de jornada pudesse se configurar como uma formação do indivíduo. Ouvindo a conversa entre o elenco, o diretor da peça e o crítico argentino Jorge Dubatti, na Escola de Espectadores que integra a programação da Bienal, soube que a encenação original da peça era itinerante, realizada em um teatro velho ou abandonado, na qual os espectadores faziam um percurso pelas cenas criadas com uma abordagem site-specific. Imagino que a peça poderia ser mais interessante feita dessa maneira que como na adaptação realizada em São Paulo. Essa informação reforçou ainda mais, para mim, o jogo com o drama de estação, mas reiterando que o percurso a fazer não leva necessariamente a lugar nenhum. Imagino a peça percorrendo um teatro antigo como um lugar que é cheio de coisas velhas, mas também um lugar que tem a sua história e a sua ação sobre nós. Em Notas de cozinha, não há possibilidade de aprendizado ou amadurecimento desses personagens. Nem dos espectadores. A peça tem uma atitude crítica, mas não está querendo “iluminar” o espectador, nem mostrar o quanto ele é fútil e manipulado. Ainda bem.

A primeira cena da peça anuncia certa descrença na ideia de impacto. Martha Márquez  diz um texto brilhante na primeira pessoa do singular, contando que foi chamada para uma conversa com a diretora da escola da filha por dar cachaça para a criança aturar as aulas estúpidas e comer bem no almoço. A mãe despreza o ensino regular e lê, para a filha bebê, livros de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e J. M. Coetzee. Em cena, uma menina linda, de seus três ou quatro anos de idade, sentada à mesa. Ali pelo palco, um dos atores brinca com um cachorro. A criança e o cachorro estão ali sem que nada aconteça com eles. Mas isso não me parece um fracasso. É como se os artistas dissessem: imagina uma criança fofinha como essa, que tem um cachorro fofinho como esse, chegando à escola de porre. E só. É como se a cena fosse uma carta de intenções da peça, escrita com dois ou três monossílabos de indiferença e um sorriso cretino. Ali me parece que não há desejo de ruptura formal ou de impressionar o espectador – a lógica da ruptura se esgotou com as vanguardas do século XX e o que acontece do lado de fora do teatro é tão bizarro, inverossímil e chocante que qualquer coisa que façamos em cena parece brincadeira infantil.

Depois dessa primeira ótima cena, presenciamos outras situações, algumas mais inspiradas, outras menos, variação que deve ter relação direta com a pertinência de cada situação de acordo com o contexto em que a peça se apresenta. O espetáculo conta especialmente com a habilidade de Matías Maldonado, comediante de mão cheia que nos dá a sensação de estar fazendo tudo pela primeira vez. A comicidade é a ferramenta crítica mais eficaz do espetáculo. Arrisco dizer que o espectador que não conseguir rir com a peça provavelmente não vai ser atravessado pela sua potência crítica.

Em determinado momento, na cena em que eles estão em um restaurante caro, a atriz descreve o que ela imagina que seja uma imagem refinada. A descrição que ela faz é bastante sem graça, até que aparece a projeção de um videoclipe do pianista Richard Clayderman. É hilário perceber que fomos culturalmente colonizados por essa classe de imagens midiáticas, com esse grau de cafonice. Soma-se a isso a presença do vídeo mencionado no início do texto, uma propaganda da qual as pessoas sabem o título e que ganhou prêmios – como uma obra. A presença desse vídeo é um achado da dramaturgia do diretor. Ele aponta como a propaganda pode ganhar status de criação em um sentido bem próximo ao artístico – questão abordada por Susan Sontag em relação às fotos feitas para campanhas publicitárias. A propaganda ocupa um lugar de destaque na nossa relação com as imagens. Em vez de fazer um discurso sobre isso, a peça simplesmente insere os vídeos, estabelecendo assim uma lida singular com a economia das imagens. A acidez do espetáculo não é acusatória, não aponta culpados nem heróis, nem soluções.

O fato de que os artistas, na atitude em cena, não se levam muito a sério, que eles não estão fazendo coisas intensas e dramáticas, abre uma possibilidade para que o espectador não se leve tão a sério também. O cinismo no humor tem sido determinante na lida dos brasileiros com as reviravoltas surreais da política nacional. As manchetes do Sensacionalistacirculando pelo Facebook e a coluna do Gregório Duvivier, para citar alguns exemplos, têm uma eficácia que os melhores discursos do Jean Wyllys, esclarecedores e inteligentes, não têm. Com o humor das tirinhas da Laerte, por exemplo, acho possível que aquele cidadão distraído, que está meio boiando nisso tudo, veja com olhos críticos o que está se passando no país. No teatro é a mesma coisa. É mais fácil uma pessoa se achar ridícula por querer jantar na Famiglia Mancini quando uma peça faz com que ela ria de si mesma do que quando o teatro a acusa de ser medíocre pelo simples fato de ser classe média – quando os artistas na verdade pertencem à mesma classe social desses espectadores que desprezam.

Na ideia mais comum de teatro que tem atitude crítica, os artistas de teatro às vezes caem na ingenuidade de achar que estão em um lugar de superioridade. Em Notas de cozinha, estamos todos fritando na mesma panela, o artista não é o messias e o inimigo não é o outro.

Atravessando o território do Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Metacrítica a partir de Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

26 de março de 2014

O lugar do calvário virou cenário para piquenique. Mas quem seria sacrificado? Jesus Cristo não estava sozinho na crucificação proposta pelo diretor argentino Rodrigo García e sua companhia La Carnicería em Gólgota Picnic, apresentada durante a primeira edição da MITsp. Mesmo com todo distanciamento proposto pela encenação do palco italiano, é o público quem está ali enfrentando “as verdades” de uma sociedade que não deu certo; embotada pelo capitalismo desenfreado, pela sede de poder, pela guerra.

O discurso cênico não se deixa encerrar numa só análise; e isso se dá principalmente por conta da quantidade de estímulos a que a plateia é submetida. Se fosse, aliás, apenas por exercício mental, para resumir leituras e significados, excesso seria uma boa palavra. Excesso de palavras, excesso visual, excesso performático. Sem verticalidades, o texto desfia um rosário de críticas que, em algum momento, de uma maneira ou de outra, irão atingir o espectador. Mesmo aquele que, inicialmente, consegue se distanciar do discurso quase panfletário da montagem, talvez seja capturado quando a função da própria arte e os seus conceitos são questionados. Há espaço para tudo: desde os artistas que retrataram o calvário até críticas sobre o mercado de arte e as suas instituições.

Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García transita pelos limiares do panfletário, dessa construção calcada em clichês e superficialidades. Ao mesmo tempo, no entanto, é esse acúmulo que constrói a potência do discurso que se rebela contra o estabelecido e nos faz questionar as bases da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: estamos todos ali participando do mesmo piquenique, satisfazendo os nossos desejos, nos utilizando da arte para saciar as próprias falências e deficiências.

Ainda que atinja tantos alvos, o enunciador desse discurso se mostra sempre um só. Não há diálogos entre os atores, que não assumem personagens definidos. São todos participantes de um encontro na grama de hambúrgueres de que é composto o cenário. Essas pessoas não têm identidade – podem ser qualquer um de nós em discursos ditos de maneira isolada ou em confabulação e sem contrapontos advindos do embate que qualquer diálogo pode trazer. Não há outra visão, quebras ou rupturas na construção dessa mensagem. Isso se confirma também na maneira como os atores dizem o texto – em tom de conversa, às vezes de confissão, de narração. Essa linearidade entra em choque imediatamente com a profusão visual da montagem.

Rodrigo García constrói uma instalação. As artes visuais estão entranhadas no seu teatro. As projeções em vídeo e também em tempo real em proporções gigantescas que nos levam para dentro da tela; os 25 mil pães dispostos no chão; a maneira como a performance dos atores se desprende da realidade. Eles mesmos reinventam os seus próprios quadros sacros ou profanos. Eles são os personagens – mesmo que ausentes de personas definidas – da simulação da vida. Recebem a tinta no corpo como se fossem as árvores que carregam os frutos e são banhadas com inseticidas.

O pão simboliza o sagrado, o corpo de Cristo, mas também a consagração do consumismo, do fast food. A maneira doentia como a nossa sociedade se relaciona com a comida; a crise de alimentos que assola o mundo enquanto a cultura do desperdício é instaurada. As metáforas podem ser claras assim ou nos levar por caminhos desconhecidos, que chegam quanto mais nos distanciamos da obra. A potência está exatamente na possibilidade de reverberações e imagens que a encenação de Rodrigo García nos permite formatar.

As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real; mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo de maneira muito clara e efetiva.

Mesmo que o lugar de espectador seja preservado, somos provocados e desestabilizados o tempo inteiro. Seja pelo cheiro desconfortável dos pães, pelas minhocas colocadas dentro do sanduíche, pela sujeira da tinta azul e vermelha, pelo bolo da comida mastigada que, projetada na tela, nos causa embrulho no estômago e ânsia de vômito.

Quando, por fim, parece que passamos por tudo isso e a divindade bate à porta, não sabemos lidar com ela. E isso, mais uma vez, nos tira do lugar do conforto. O pianista se despe para executar a obra Sete últimas palavras de Cristo na cruz, de Joseph Haydn, mas a mudança de estado no espectador proposta pela música clássica que, inicialmente, nos conforta, também sufoca. E incomoda pensar que ela nos inquieta. Que à estética do Gólgota estamos bastante habituados, a rapidez desconcertante, uma quantidade incomensurável de estímulos, a poluição, a sujeira, a violência. O choque é tão brutal que não conseguimos absorvê-lo e continuamos nos debatendo como se não conseguíssemos sair do Gólgota para o lugar do sagrado – se é que ele realmente existe.

 

Pão e tinta

Crítica da peça Gólgota Picnic, de Rodrigo García

MITsp 2014

 

Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.

Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.

Foto: Ligia Jardim.
Foto: Ligia Jardim.

A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.

Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.

A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.

 

As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota

Foto: Lígia Jardim
Foto: Lígia Jardim

Crítica do espetáculo Gólgota Picnic, de Rodrigo García, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?)

MITsp 2014

14 de março de 2014

Introdução.

É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.

Público caído.
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?

Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique.
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.

Toma que o calvário é teu.
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.

O pão espetacularizado.
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.

O corpo coberto por tintas e significados.
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.

A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatr