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Quilombos abertos

Foto: Nereu Jr.

Crítica a partir do espetáculo A Missão: 12 lições de descolonização em legítima defesa, do coletivo Legítima Defesa, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/ DocumentaCena)

MITsp 2017

Além de terem servido como refúgios e pontos de resistência contra a escravidão que, por mais de três séculos, com amparo da lei, vigorou em território brasileiro, os muitos quilombos criados ao longo de toda nossa história colonial tinham e seguem tendo como importantes funções resgatar a cosmovisão africana, assim como os laços familiares frequentemente perdidos durante o processo de escravização da população negra. Pois parece ser a um quilombo reinventado e extremamente contemporâneo que vemos pela fresta das cortinas do teatro, enquanto nos acomodamos para assistir ao espetáculo A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, realizado pelo grupo Legítima Defesa.

Pela fresta da cortina, assistimos a um corpo coletivo que continuamente se move, sem sinais de exaustão, rumo a uma missão que, veremos mais adiante, também se constitui como causa essencialmente coletiva. Respiração consciente e pulso constante atestam a vida e a vitalidade dos corpos negros que vemos ali, os quais transitam com segurança e liberdade entre diferentes registros de atuação e presença, compondo, camada por camada, um espetáculo com ares de sarau que se propõe a visitar crítica e propositivamente a peça teatral A Missão, escrita em 1979 pelo dramaturgo alemão Heiner Müller.

Trazendo como contexto histórico a experiência colonial jamaicana, tanto a peça de Müller quanto a montagem do grupo Legítima Defesa rapidamente nos sugerem paralelos com a história brasileira, ao tratar de uma negritude que se constitui em condição de subalternidade, longe das fronteiras do continente africano e sob a tutela legal de impérios europeus. Seja no Brasil ou na Jamaica, ocupamos todos lugares de subalternidade dentro de um sistema-mundo colonial fundado no século XVI, justamente a partir da invasão da América pelos impérios da Península Ibérica.

É a partir de uma composição entre múltiplas linguagens artísticas, no entanto, que temos acesso à obra de Müller e às perspectivas do coletivo sobre essa mesma narrativa, ali entreposta a canções, coreografias, relatos documentais dos atores e citações de importantes e diversificados nomes da resistência negra ante o contexto colonial, tais quais o político guineense Amílcar Cabral, a intelectual e ativista estadunidense Angela Davis e a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus.

Diante de um jogo cênico de regras bem marcadas, no qual diferentes atores e atrizes se alternam na interpretação dos três personagens que conduzem a trama, vemos reforçada a dimensão coletiva das vozes que testemunhamos em cena. No melhor estilo microfone aberto, diferentes vozes ocupam o palco. Se o rap muitas vezes dá forma à narrativa e às vozes que a integram, também há espaço para outras expressividades musicais e visuais da cultura negra, deixando evidente que a condição de subalternidade e permanente necessidade de resistência muitas vezes, ainda que contraditoriamente, serviu – e ainda serve – como estímulo ao desenvolvimento de culturas híbridas, complexas e, pelos mais diversos caminhos, conectadas à própria ancestralidade e à noção de coletividade.

Enquanto acompanhamos os desdobramentos da possível revolução jamaicana, somos convidados também a rever outras revoluções. Ao apresentar-nos o “Teatro da Revolução Branca”, a montagem chama atenção aos limites da Revolução Francesa e de outras tantas que, sobretudo ao longo da história moderna, jamais alteraram substancialmente a ordem colonial que organiza boa parte do mundo em que vivemos. Conforme atesta a literatura decolonial e a própria realidade social que experimentamos no Brasil, não existe uma humanidade moderna sem uma sub-humanidade moderna.

Aos poucos percebemos, no entanto, que, ao contrário do que se poderia pensar, uma efetiva revolução não pode se dar pelo consumo, pela ascensão social ou mera inserção em um sistema colonial pré-definido, mas, certamente, na reinvenção desse sistema. Percebemos que a revolução pode se dar pelo acesso ao conhecimento, à ancestralidade, à capacidade crítica e à construção de novas narrativas. Pode se dar, quem sabe, pela capacidade de se “aquilombar”, de se organizar como força coletiva, criativa e propositiva de resistência e re-existência. Parece ser a partir do quilombo e de sua racionalidade, então, que talvez possamos alcançar, efetivamente, os prometidos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Enquanto o patrimonialismo exacerbado da sociedade brasileira parece impedir que tais valores se concretizem para além das fronteiras dos quilombos, a lógica interna desses espaços, hoje desdobrados em outros, parece ser diferente. Apesar de a ancestralidade africana predominar na maioria dos quilombos, alguns estudos genéticos têm revelado haver ali também elementos de origem europeia e indígena, mostrando a histórica capacidade de integração e solidariedade do povo negro.

Como sul-americanos, legítimos integrantes do sul-global, talvez devêssemos todos nos aquilombar. Pois parece haver, nesse e em outros quilombos, espaço para negros que são negros e negros que não necessariamente o são. E talvez o que nos una seja o desejo de efetiva mudança. Por isso levemos essa carta aonde formos, e passemos a palavra adiante.

Voar e saber cair

Para-que-o-céu-não-caia

Texto sobre o espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, escrito por Renan Ji (Questão de Crítica / DocumentaCena )

*OBSERVAÇÃO DO AUTOR: Este texto contém passagens que antecipam certos procedimentos fundamentais do espetáculo. Recomenda-se lê-lo, se possível, depois da apresentação.

MITsp 2017

O espaço é uma sala negra, câmara escura. O céu, portanto, descortina horizontes indefinidos, fechados, foscos. O título do trabalho de Lia Rodrigues e companhia nos adverte: o céu arrisca desabar sobre nossas cabeças. Alguém talvez dissesse: protejamo-nos. No entanto, essa não é a direção de Para Que o Céu Não Caia. O movimento do espetáculo é de expansão, de ocupação do espaço, de infiltração e porosidade entre dançarinos e plateia. A energia circula entre esses agentes para formar um bloco convivial que volte a inflar a cúpula do céu sufocante, enfrentando-a.

Em outras palavras, um pouco menos metafóricas: laços são estabelecidos entre nós e os bailarinos, numa relação energética que resiste ao enclausuramento. Para tanto, é necessário quebrar as barreiras civilizacionais entre os respectivos primitivismos (nosso e deles): os performers nos encaram e devolvem nosso olhar de estranhamento, demovendo nossa postura poluída, tóxica e ambientalmente tosca de bípedes racionalizados. Fazem-no contemplando a nós com o aroma telúrico do café, revestidos da farinha/poeira dos tempos. Eles nos confrontam e revelam nossa inadaptação ao primordial.

Em seguida, gritos e lamentos, balbucios chorosos, apontam para o caos no seio das coisas. Há algo que precisa ser esconjurado, posto para fora, expandido. Com os dançarinos abrindo um grande círculo entre os participantes, o espetáculo fornece uma única diretriz clara e verbal (em meio a uma dramaturgia que busca o contato entre corpos sempre de maneira muito sutil): devemos nos sentar. Creio que estar em contato com o chão, nesse momento, é indispensável: sentimos mais forte o cheiro do café; acompanhamos os rasantes dos bailarinos sobre nossas cabeças; sentimos na base da coluna o ritmo das passadas fortes no solo.

É notável como a coreografia ritual é menos um código de gestos e mais uma pulsação coletiva. A batida dos pés no chão dita o ritmo das sequências de movimento e une corpos numa mesma vibração hipnótica. Mas nem por isso o espetáculo se torna menos dança devido à forte influência ritual. Na ondulação do corpo, há um misto insondável de transe, sensualidade e técnica. Os bailarinos de Lia Rodrigues batem firmemente os pés no chão, jogam com os quadris e geram espaço com braçadas rápidas e precisas. O dionisismo dos gritos, contorções e arcos histéricos são entremeados por saltos e quedas calculados, rodopios finamente delineados de torso e braços, mãos e gestos conduzidos com leveza efêmera, renovando o vocabulário da dança contemporânea.

Além disso, é interessante perceber como a orientação desses movimentos revela menos uma ascensão e mais uma entrega ao solo. A expansão a que me referi anteriormente diz respeito mais a uma horizontalidade, a um preenchimento simbólico e energético da base física das coisas: paradoxalmente, ao céu que periga cair responde-se com pisadas fortes e mãos no chão, com o fortalecimento do corpo junto à terra, com saltos aéreos que sempre terminam no reencontro com a materialidade. Há movimentos súbitos que parecem clamar por uma verticalização espiritual, na direção dos céus. Porém, voar antes de tudo significa saber cair, reencontrar e fortalecer as raízes terrenas, que suportarão a abóboda do céu.

Suportar o céu, assim, é menos um esforço de ascensão (tão típico da metafísica ocidental) e mais um pouso na superfície, revelando a sabedoria da alma selvagem que todos esquecemos: curvar-se em direção à terra, fundá-la e torná-la densa para impedir a queda do cosmo. De forma análoga, é necessário então sair e retornar ao corpo, projetá-lo para os ares, mas trabalhá-lo na musculatura. É disso que se trata a última etapa do rito-dança: a cor amarela da cúrcuma é semeada no assoalho, substituindo o obscuro do café. Pequenos pontos de sol são semeados na terra e nos corpos, refletindo e alimentando a luminosidade celeste. É o solo rico que garante um céu aberto; o corpo aberto e deitado – enraizado – ao chão é aquele que mais se volta para o céu e se dedica a ele.

Por fim, caberia dizer mais uma coisa sobre a horizontalidade do universo de Para Que o Céu Não Caia. A expansão horizontal é um dado que se revela uma necessidade social e afetiva, pertinente à maneira como nos relacionamos com o outro, com o mundo e com o espaço. Verticalizados, olhamos com inveja para os mais altos e com desdém para os mais baixos. Horizontalizados, podemos desfazer essas dicotomias e nos deslocarmos em fricção e solidariedade com o outro. O espetáculo da Lia Rodrigues Companhia de Dança parece nos fazer um convite: olhe nos olhos, perceba, sente-se e se suje. Cheire e espirre por causa dos pós – o espirro não deixa de ser uma forma de esconjuro do corpo. Deitados e estendidos, resistiremos. É necessário voltar ao solo, ao enraizamento, à prática concreta, para salvarmos um céu carregado de maus agouros.

Entre o ceticismo e a vertigem

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Crítica do espetáculo Revolução em Pixels, de Rabih Mroué, por Renan Ji (Questão de Crítica/ Documentacena)

MITsp 2017
Imagens de um mundo em guerra povoam os recônditos da internet. O real está ali, inquestionável, não tanto por ser algo factual, mas porque corpos são alvejados e comunidades dizimadas. Acredito que a morte não nos permite a leviandade do ceticismo: o elo de humanidade, a sensibilidade diante de uma cena de morte, pressupõe que a encaremos como verdade, mesmo que somente a princípio, mesmo que por um breve momento. Passado o choque, contudo, nada impede que surja a questão de como se chega à representação da morte. De fato, vídeos e fotos possibilitam a construção de narrativas diversas sobre o real. Mortes podem ser justificadas, repudiadas e simuladas, distorcidas pela manipulação da imagem e pela condução da narrativa. Rabih Mroué nos mostra como as montagens do governo sírio, as cenas de violência crua e ritual dos grupos terroristas islâmicos e os vídeos amadores de rebeldes civis possuem certos códigos de representação. Se cada qual revela uma maneira diferente de narrar o conflito, estamos inevitavelmente em meio a uma disputa de narrativas. E se estas são veiculadas na internet, nos recônditos da dark web, da deep web ou simplesmente do Google, o conflito é ainda maior: imagens de guerra são disseminadas na zona de guerrilha em que a internet se tornou, disputando pela primazia de dizer a verdade que nos choca.

Sobre a guerra na Síria, Rabih Mroué deseja saber o que realmente aconteceu ali. Não importa que o ceticismo nos alerte da impossibilidade de recuperar uma reprodução do real. A intenção e a forma de olhar é o que conta. Mroué parece entender que as narrativas disponíveis nos afetam de maneiras diferenciadas, e que, portanto, não são todas equivalentes. A mise-en-scène dos jornais institucionais pró-Bashar al-Assad postulam uma estabilidade política que se traduz em enquadramentos nítidos, filmagens panorâmicas e ângulos calculados; já os vídeos de rebeldes civis partem da precariedade pixelada do equipamento amador, arma pessoal de captura do real em oposição ao arsenal técnico das grandes narrativas. Entre essas duas visões de mundo, Mroué adere decididamente à perspectiva do rebelde, submetendo-se ao fascínio pelos rastros digitais que ele imortaliza depois de um upload.

Ainda que podendo ser pensada esteticamente, em comparação, por exemplo, ao movimento Dogma 95, é a partir da técnica simplória da representação de um rebelde sírio que Mroué acessa um outro lado do conflito civil. O tripé mecânico que sustenta as grandes narrativas cinematográficas dos meios de comunicação encobre uma verdade que somente aparece no olhar daquele que sustenta o seu equipamento com duas pernas. Há algo de inequivocamente verdadeiro, orgânico, na imagem captada por um celular suportado por pernas hesitantes, braços trêmulos, junto ao olho injetado que contempla o olho do algoz atirador. Double shooting: gravar aquele que nos “grava” com o cano da arma. E gravar de forma a que o olhar do espectador se sobreponha àquele da câmera, colocando-se na mira do disparo.

A possibilidade de double shooting redobra nossa consternação diante da imagem da morte, porque, de forma inaudita, aproxima o espectador da fenda indizível que se instaura entre o viver e o morrer, a partir da experiência do cinegrafista. De forma paradoxal, essa aproximação se torna tão aterradora por se estabelecer em via negativa, por meio de uma ausência: não há possibilidade de captar esse pequeno e fatal momento entre estar vivo e morto. O que resta são fragmentos sonoros de agonia; a tela preta após a queda do pequeno equipamento de vídeo no instante em que o corpo é alvejado. Prova dessa impossibilidade talvez seja a vertigem nauseante diante da possibilidade de encarar o rosto do algoz, quando Rabih Mroué, buscando a identidade do atirador de um dos vídeos, aumenta em zoom o frame que o enquadra. Mroué aproxima a imagem até a desfiguração; porém, a mancha matizada desperta a profunda inquietude com a possibilidade de olhar aquele que nos mira com o fuzil. Nada mais que a vertigem diante do possível rosto da morte.

A revolução do título da palestra-performance de Rabih Mroué talvez esteja precisamente no atravessamento afetivo que os vídeos de double shooting dos rebeldes sírios proporcionam ao espectador. Esses vídeos revolucionariam porque, de acordo com o artista, gritam em meio ao tiroteio propagado por um Estado antes bélico que social. A partir desses pequenos filmes, há a esperança de que seus autores tenham sobrevivido, pois é inegável que eles foram jogados na rede por alguém. Se não, ao menos, a cada repetição deles, pode-se reencenar constantemente seus atos de resistência fatal. Reviver e morrer, resistir. Cabe lembrar que afirmei anteriormente que essas imagens eram dotadas de “verdade orgânica”. Mas o certo é que nossa atenção e sensibilidade se voltam a esses vídeos por causa da narrativa e dos enquadramentos possibilitados pela técnica e pelo olhar proposto em Revolução em Pixels. É o olhar de Rabih Mroué que nos ajuda a refigurar tais rastros digitais e recuperá-los de sua obscuridade. A importância do artista nesse processo, portanto, é cabal. Nesse sentido, a revolução em pixels passa pelo crivo da arte. A arte ganha guerras? Com a arte, não há somente um rever cenas; nos vídeos de que fala Rabih Mroué, revivemos e morremos. O artista nos ensina novamente a viver e a morrer. E a não esquecer. A revolução passa por aí.

A quem servimos enquanto rimos?

Foto: Caio Nigro.
Foto: Caio Nigro.

Crítica a partir do espetáculo A Tragédia Latino-Americana, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/ DocumentaCena)

MITsp 2016

São muitas, decerto, as tragédias latino-americanas das quais se poderia tratar em um espetáculo teatral. São muitas, de igual modo, as perspectivas sob as quais se pode narrar essas tragédias, que decerto serão diferentes segundo o ponto de vista a partir do qual se observa a vida no continente que habitamos e construímos juntos. Enquanto quem o vê com olhos de colonizador pode associar essas tragédias aos povos que originalmente habitavam o território latino-americano, tratando-os como bárbaros, peladões, bugrada, primitivos, atrasados, molengas, lamentáveis, pateticamente orgulhosos, pouco gentis ou simplesmente servis, quem observa o mesmo continente sob a ótica do colonizado – que agora luta para descolonizar-se – talvez associe essas mesmas tragédias à servilidade de nossas sabotadoras elites, quase sempre mais alinhadas aos interesses da metrópole do que às sociedades que, seja antes, durante ou depois do período colonial, por aqui se constituíram. Ainda que muitas nuances existam entre essas duas visões, parece ser interessante percebê-las como perspectivas divergentes e, quiçá, concorrentes, em relação à construção da nossa história.

Inspirado em obras da literatura latino-americana e composto por sucessivos quadros que, ao longo de quatro horas, remontam a diferentes recortes de nossa realidade social, o espetáculo A Tragédia Latino-Americana, criado por Felipe Hirsch e Os Ultralíricos, dispõe em cena personagens como o jesuíta catequizador, o sujeito em processo de alfabetização, o colonizador português, o pescador macumbeiro, a estudante evangélica, a trabalhadora do lixão, o intelectual latino-americano, o deficiente visual explorado, a travesti marginalizada e até mesmo uma epígrafe existencialista que traz à cena questões sobre as tiranias do justo e do injusto. Permanentemente substituindo-se em meio a um cenário que é ao mesmo tempo construção e ruína, tais personagens nos convocam a enfrentar questões políticas que permeiam tanto nossa história quanto nossa experiência social atual.

Ainda que diferentes vozes e diferentes lugares de voz ganhem o palco ao longo da montagem, o que se tem em cena são, quase sempre, situações de subordinação à conhecida narrativa contada e disseminada pelo homem branco. Fazem-se presentes, não por acaso, conflitos relacionados ao machismo, ao sexismo e ao racismo, dando a ver um contexto social cujos parâmetros civilizatórios recorrentemente remetem a critérios criados muito longe do território latino-americano. Constitui-se, então, um contexto em que o estupro – seja sexual, cultural ou de outras naturezas – aparece como ameaça permanente, e no qual o conservadorismo se manifesta a partir da distinção de papéis e comportamentos bastante definidos para homens e mulheres, assim como pela travesti que, em pleno ano de 2016, parece ainda não ter conquistado seu ambicionado artigo feminino. E ainda que autores de Cuba, Bolívia e Equador se façam presentes entre os textos que inspiram a dramaturgia do espetáculo, é no mínimo curioso perceber que tal representação não aconteça entre as fisionomias que levam tais textos à cena.

Também chama atenção, em A Tragédia Latino-Americana, a reprodução de uma agressividade crítica – e por vezes cômica – que se dirige aos nomes que constituíram e constituem nossa história oficial, deixando em segundo plano a critica às ideologias e visões de mundo que os movem. Percebemos, com isso, traços que remetem à infrutífera pessoalização dos nossos conflitos sociais e políticos, cuja complexidade decerto aumenta quando enfrentamos as mal-contadas raízes e engessadas estruturas que os sustentam ao longo de tantos séculos.

Vestidos com trajes que remetem a algum tipo de aristocracia, os atores que conduzem a montagem se organizam entre cenas individuais, duplas e coletivos e nos oferecem uma visualidade descolorida em que predominam o preto e o branco. Talvez como modo de apresentar a polarização que atualmente nos caracteriza, a ausência de matizes reforça os contrastes e a dificuldade de diálogo tão visível na cena quanto nos dias em que vivemos. E a partir dessa perspectiva, tanto o espetáculo quanto boa parte da sociedade brasileira parece colocar “no mesmo balaio” movimentos relacionados à reivindicação de direitos e à restrição de direitos do outro, desconsiderando, em certo sentido, a franca desigualdade de poder que constitui a origem da civilização latino-americana conforme a conhecemos hoje.

Mesmo lançando-se em direção a questões densas e territórios de claro conflito ideológico, a montagem que se apresenta como tragédia curiosamente provoca, em muitos momentos, o riso do espectador. Mas se estamos diante de uma visão que destaca nossas próprias tragédias, historicamente associadas à impossibilidade de autogoverno e autodeterminação, parece-me interessante que examinemos, cada um de nós, do que, exatamente, estamos rindo.

 

Publicado no site da MITsp em 10 de março de 2016.

http://mitsp.org/2016/a-quem-servimos-enquanto-rimos/

“Se eu pudesse, voltaria hoje”

Crítica do espetáculo Cidade Vodu, de José Fernando Azevedo, por Mariana Barcelos (Questão de Crítica / DocumentaCena)

MITsp 2016

 

No teatro, quando a narrativa biográfica ou confessional se destaca na dramaturgia e na montagem como elemento formador do trabalho, é como dizer que a escolha somente pela ficção não daria conta. O relato íntimo te impõe a crença, não se pode fugir do que se está ouvindo nem ficar no lugar confortável da ideia de “teatro, mentira”.

Dentre inúmeras características dessas dramaturgias, destaco duas: quando se decide falar de si, entende-se que sua história/texto tem um conteúdo com capacidade de ampliação, que é, de certa maneira, coletivo, que diz respeito a muita gente, e por isso é importante ser dito – algo que nem sempre se dá. O outro aspecto é que a afetividade intrínseca às falas geralmente produz a conexão com o público. O que eu tenho a dizer importa, estou emocional e afetivamente envolvido com o relato, e, se o que é dito é de fato muito relevante, optar por uma crítica que prioriza os aspectos técnicos do fazer teatral, além de a mim ser questionável e gerar um desconforto, diminui a importância do enunciado, algo que, em se tratando de Cidade Vodu, criação do Teatro de Narradores, eu não teria autoridade e nem o direito de fazer de dentro deste meu corpo branco.

Cidade Vodu escolhe relatos datados na história para desenhar uma linha do racismo nos últimos séculos sob a perspectiva da nacionalidade dos atores do espetáculo, a bem dizer, haitiana. Numa sequência cronológica, as falas começam no período escravista e alternam contar casos que descrevem com minúcias a bárbara violência sofrida pelos povos negros, com discursos dos homens que detinham o poder à época. Na sequência, tratam do período colonial do Haiti sob os desmandos de Napoleão Bonaparte, de contínua crueldade. O último recorte fala da imigração haitiana para o Brasil após o terremoto de 2010 e da entrada das forças de paz da ONU em parceria com o Exército Brasileiro (MINUSTAH). Neste momento, os relatos se voltam para a vida dos próprios atores, artistas haitianos recém emigrados para o Brasil, em decorrência da condição de vida insuportável e insustentável após o terremoto. Parte mais tocante dos relatos, porque as dores são inimagináveis e aconteceram exatamente com aquelas pessoas, a ênfase está no tratamento recebido pela população haitiana tanto no país nativo, quanto no Brasil e no percurso geográfico da migração. As memórias mais uma vez de violência, truculência por parte do Exército (uma gente que propõe devolver a paz com atitudes criminosas) e do preconceito vivido em terras brasileiras fecham a narrativa apontando o racismo como componente estrutural das sociedades e não simplesmente circunstanciado no tempo histórico.

Dado o valor da proposta e sua potência, então, cabe dizer que a estreia no dia 7 de março, no impactante espaço da Vila Itororó, padeceu por alguns problemas. No percurso itinerante do espetáculo, falhas de projetor e microfones dificultaram a compreensão do texto, primeiro, porque muito não se ouvia e, segundo, porque a ausência da legenda projetada quando as falas estavam em outra língua interrompia a possibilidade de seguir o fio dramatúrgico. Aparentemente, tinha mais público do que o viável para que todos conseguissem acompanhar as cenas tendo condições de realmente assistir ao que acontecia. Fatos que precisam ser revistos e que sem dúvida melhorarão as possibilidades de recepção.

Mais ou menos na metade do espetáculo tem uma festa, um encontro proposto pela encenação. Num espaço amplo, o público é convidado a se sentar, comer, beber, conversar e dançar ao som de músicas típicas haitianas cantadas pelos próprios artistas. Um dos atores apresentou o espaço para mim e para outra espectadora (Júlia) como sendo a Cidade “Vodu”, este boneco no qual são projetados castigos nos outros quase sem possibilidade de defesa. Conversamos um pouco. Júlia perguntou se ele gostaria de voltar para o Haiti, resposta: “Se eu pudesse, voltaria hoje”, e riu. A troca de olhares foi por empatia, embora nada possamos saber, Júlia e eu, dessa angústia. Mesmo vítima de vodu, a cidade produz um encontro alegre, caloroso. Alguns relatos sofridos surgiam em busca de cumplicidade, mas não diminuíam a atmosfera espirituosa de quem propõe a paz a quem oferece quase sempre as costas.

“Nós estamos aqui um por causa do outro”, frase de um dos relatos e eco histórico. Se o estar junto veio constantemente à  base do choque, do enfrentamento, da resistência e da luta, Cidade Vodu propõe um encontro festivo contra o modus operandi do nosso mundo que vê lógica em entrar em guerra para alcançar a paz. Se a proposta é o encontro, como não, encontremo-nos.

Mesa-redonda e lançamento de livros na Prática da Crítica na MITsp 2016

Foto de Caio Nigro.
Foto de Caio Nigro.

A Documenta Cena – Plataforma de Crítica realizou uma ação denominada Prática da Crítica na MITsp 2016 e produziu diariamente, ao longo da mostra, críticas sobre os espetáculos para veiculação impressa e eletrônica. Além disso, o grupo participou da mesa-redonda Recepção e Crítica, com Edélcio Mostaço, Daniele Avila Small, Kil Abreu e Patrick Pessoa, mediação de Luciana Romagnolli, no dia 7 de março das 14h às 16h30. Houve lançamento dos seguintes livros:

O Crítico Ignorante: uma negociação teórica meio complicada (7 Letras), de Daniele Avila Small

Soma e Sub-tração – territorialidades e recepção teatral (Edusp), de Edélcio Mostaço

Para Alimentar o Desejo de Teatro, de Maria Lúcia Pupo (Hucitec)

As atividades foram realizdas no Itaú Cultural.

 

Foto: Caio Nigro.

 

Formas para a transgressão e a reintegração

Crítica de Notas de Cocina, do grupo Teatro do Embuste, por Luciana Romagnolli (Horizonte da Cena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

28 de dezembro de 2015

No acúmulo das cenas de “Notas da Cocina”, o grupo colombiano Teatro do Embuste segue linhas do texto do dramaturgo argentino Rodrigo García para percorrer alguns dos desvios do desejo numa sociedade de capitalismo tardio, cujo imperativo consumista, em tensão com a extrema desigualdade econômica, produz aspirações de ostentação para distrair do vazio da experiência cotidiana. Ícones mais ou menos decadentes dessa high society, como Eike Batista ou o restaurante Fasano, apontam para um modo de vida reconhecível no imaginário do brasileiro, arrolados num discurso cênico modalizado pelo cinismo.

A atitude de desprezo pelas convenções sociais e morais gera uma sequência desconcertante logo de início: a mãe que, para proteger a filha da mediocridade padronizadora do sistema de ensino, embebeda-a antes de ir à escola. A presença de uma criança como rastro do real em cena tensiona ainda mais uma construção ficcional que, em si, já é conflituosa pelo choque entre a razão crítica e o despautério. Esse impasse abre uma primeira indagação possível de ser formulada a partir do trabalho: qual a potência política do cinismo como crítica social?

Esta pergunta se reforça no contexto em que o espetáculo é apresentado no Brasil, integrando a programação da II Bienal Internacional de Teatro da USP, cuja curadoria propõe um olhar para dramaturgias transgressoras sob o mote “A Esquerda do Sol: poéticas e políticas Latino-Americanas”. E a ela não se pretende, nesta crítica, dar uma resposta conclusiva, senão ensaiar alguns apontamentos.

O cinismo seria uma distorção estilística correspondente, na linguagem, ao diagnóstico de uma distorção na forma de vida contemporânea em relação às expectativas sustentadas pelas normas sociais. Entre as muitas reflexões apresentadas por Vladmir Safatle no livro “Cinismo e Falência da Crítica”, consta a ideia de que o padrão de racionalidade de nossa sociedade, no atual estágio do capitalismo, seria o do cinismo. O modo cínico de operação estaria relacionado a uma sociedade em processo de “crise de legitimação”. “Para o cínico, não é apenas racional ser cínico, só é possível ser racional sendo cínico”, diz. Um ponto interessante da argumentação do autor é que, na chave cínica, não só o sistema de lei, mas também a própria transgressão, são anunciados como normativos.

Pensando isso em relação a “Notas de Cocina”, interessa observar as transgressões àquilo que se estaria criticando à primeira vista. Tal como o disparatado embebedar da criança contra o sistema de ensino, há o casal que desafia os salamaleques gastronômicos de um restaurante de luxo comendo, enquanto bebe a champagne mais cara da casa, uma porção de batatas fritas trazidas de algum boteco. Está clara a provocação contra ambições sociais que são como balões de ar, invólucros de pouco ou nada.

Então as transgressões recaem em outro extremo da estupidez (pelo vazio) da conduta humana. O cinismo seria esse lugar da falência da crítica? O espetáculo aponta para o insustentável desses desejos fúteis, debocha deles; ao mesmo tempo em que os absorve na ironia sobre a indignação, talvez ela mesma um modo de satisfação das angústias derivadas da falta de autenticidade, significado ou experiência que legitime nossos modos de viver.

O comercial da marca de jeans que se apropria de imagens e discursos de protesto para vender seu produto vem atestar que nada sobra como potência crítica. É uma posição indubitavelmente defensável, embora atinja o solo brasileiro justo no momento em que, ante uma hipocrisia generalizada, a potência crítica apareça rediviva pela força da mobilização política estudantil. Tempo e geografia estão sempre a interferir nos sentidos e afetos produzidos por um acontecimento teatral.

Há outro desdobramento para essa discussão, que surge da reflexão à luz da obra de Rodrigo García. Longe de querer atar um espetáculo ao texto do qual partiu, cabe pensar o que distintas escolhas no modo de apropriação geram em termos de efeito.

Em peças como “Gólgota Picnic”, apresentada no Brasil em ocasião do FIT-BH 2012 e da MITsp 2014, García concebe dramaturgias transgressoras dispostas a deslocar o espectador de sua zona de conforto e criar rupturas na percepção, desestabilizando sentidos, provocando reações físicas, sensoriais, emocionais, intelectuais. Isso se constrói numa intrincada rede de imagens e discursos que não convergem para um ponto pacífico, antes criam nódoas, furos, abalos na experiência de quem está na plateia e precisa redescobrir os modos de se relacionar com o que o palco lhe oferece. Determinante, para isso, tanto quanto essa forma polissêmica de tensão entre linguagens, é a postura dos performers, numa espécie de distância crítica em relação aos conteúdos expressos e ao público.

A criação do Teatro do Embuste dispensa o maior investimento em uma camada imagética e recorta o texto, concentrando a dramaturgia em cenas que apresentam situações de conflito. Estas são representadas pelos atores com um reforço na composição de personagens, o que se vê pelos figurinos, registros vocais e virtudes de interpretação distintas da fluidez performativa de encenações de García.

A opção do grupo colombiano é por um tratamento mais dramático, ainda que em sua forma expandida e fraturada, afinal, estão em cena elementos de uma gramática teatral contemporânea, como o vídeo e o skype, a irrupção do real nas participações da criança e de um cachorro (notadamente bem adestrado) e o trânsito dos espectadores por lugares de figurante ou testemunha. Disso resulta, talvez, uma postura menos transgressora, que, se não fura o tecido social do qual debocha, a seu modo esgarça-o, cria dobras, enquanto busca a adesão do público por meio da identificação, do gesto relacional e do humor.

 

Entre projeto e realização

Crítica de Projeto 85 – A dívida em três episódios, espetáculo idealizado pelos grupos [pH2]: estado de teatro,  La Maldita Vanidad, e Lagartijas Tiradas al Sol.

II Bienal de Teatro da USP

Projeto 85 – A dívida em três episódios é o resultado do projeto idealizado pelo grupo [pH2]: estado de teatro, de São Paulo, com a companhia La Maldita Vanidad, da Colômbia, e o Lagartijas Tiradas al Sol, do México. O espetáculo apresentado no Tusp, por ocasião da II Bienal de Teatro da USP, se divide em três partes: um filme e duas peças. O projeto é muito interessante, a apresentação do espetáculo no catálogo da Bienal cria grandes expectativas – para o bem e para o mal. Movidos por uma questão geracional, “o que fazíamos em 1985?”, os grupos deram início a esse projeto que também pretende colocar em jogo o ponto de vista de jovens criadores da América Latina, aproximando os três países com grupos cujos integrantes nasceram nos anos 1980.

Por um lado, sabemos que há um desejo por parte dos artistas de realizar um trabalho significativo, comprometido, que demanda pesquisa, reflexão e esforço de realização. Por outro lado, ficamos esperando que o trabalho resultante dê conta das expectativas que suscita, o que só acontece em parte. É preciso um tempo de adequação dessas expectativas ao que efetivamente se dá cena.

O primeiro episódio é um filme, O rosto da mulher endividada, cuja ficha técnica apresenta apenas nomes do grupo paulista. Tendo visto outro trabalho do grupo no dia anterior à apresentação de Projeto 85, identifiquei no filme o gosto pela opacidade que aparece emStereo Franz. Partindo da abertura do processo democrático no Brasil, o filme começa com imagens jornalísticas do povo nas ruas na eleição de Tancredo Neves, em resolução de VHS, o que dá o tom da visualidade das imagens que se seguem, como dos rostos das mães dos artistas do grupo em fotos de documento, cópias de passaporte, bem como dos vídeos gravados.

O segundo episódio, Endividamento privado, criação do grupo brasileiro com o grupo La Maldita Vanidad, é uma peça em que reconhecemos elementos do drama, com a apresentação de uma narrativa com diálogos e personagens. Enquanto a erupção de um vulcão ameaça a vida de todos, três irmãos discutem exaustivamente o destino da casa do pai, sem conseguir aceitar que o legado deixado para eles é feito apenas de dívidas – financeiras e emocionais. A narrativa começa de um modo mais ou menos realista, com os atores do grupo colombiano, mas logo se parte, quando os atores do [pH2] entram fazendo duplos daqueles personagens e as cenas começam a se repetir numa estrutura darmatúrgica espiralada. A relação com o espectador muda quando entra Fernando Arroyave, que faz o papel de um bombeiro que tenta fazer com que a família deixe a casa para salvar suas vidas. Suas falas também são endereçadas a nós, espectadores, embora não haja expectativa de reação concreta da nossa parte. A quebra, feita com delicadeza, sem alarde, anuncia a crescente desconstrução. Em alguns momentos, as atrizes que fazem a filha/enfermeira também olham na direção da plateia, mas isso acontece apenas como uma marcação de movimento, sem estabelecer um contato visual.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Tendo visto outras peças do grupo de Bogotá este ano na MITsp e, como disse antes, a do [pH2] na programação da Bienal, é possível perceber que houve uma tentativa de somar as caracteríticas de ambos. A companhia La Maldita Vanidad entra construindo uma narrativa, conferindo identidade aos personagens, e o [ph2] entra para desconstruir o aparente realismo. As soluções dramatúrgicas são interessantes e o elenco colombiano consegue estruturar as atuações da construção à problematização. Mas o acontecimento fica prejudicado pelas atuações dos integrantes do grupo paulista, que parece não se encaixar bem naquele contexto. As imagens de arquivo da erupção do vulcão em Armero em novembro em 1985, que encerram o episódio através da TV que faz parte do cenário, implodem o impasse familiar com uma catástrofe natural inexorável. A dramaturgia, ponto forte da cena, fica um pouco ofuscada pela falta de uma mão firme da direção com relação ao trabalho dos atores. É possivel identificar o projeto da encenação, a proposta artística por trás da cena, mas a cena em si ainda precisa de trabalho para acontecer com a potência que promete.

Já a terceira parte, Endividamento público, é uma peça com traços épicos e documentais, com recursos de audiovisual, criada pela companhia paulista e pelo Lagartijas Tiradas al Sol. A dramaturgia tece uma relação entre fatos históricos do México e do Brasil, tomando como acontecimentos-chave o terremoto de 1985, as Olimpíadas da Cidade do México em 1968 e a que vai acontecer no Rio de Janeiro em 2016. A combinação de textos e imagens parece mais elaborada no começo da peça. A produção visual dos destroços do terremoto é ótima, mesmo sendo um pouco cansativa. O problema é que depois a peça se esvazia. O final deixa ver certa ingenuidade, que geralmente aparece quando se quer falar do momento político presente em tom de denúncia. A falta de distanciamento crítico e o pathos com que o material é trabalhado acabam boicotando um pouco o rigor de elaboração poética.

O espetáculo fica prejudicado com a falta de uma dedicação sobre as atuações, por conta de limitações técnicas básicas como a atitude do corpo, a elaboração da emissão vocal, a articulação de sentidos na forma da fala de alguns atores e atrizes. As ideias aparecem mais no plano intelectual. As intensidades aparecem do pensamento para a fala – mas é uma fala sem tônus, muitas vezes trabalhada só no volume – com exceções, naturalmente. Gabino Rodriguez e Maria Adelaida Palacio, por exemplo, atuam com o corpo inteiro, integrado ao pensamento e à proposta estética de cada trabalho.

A abordagem da história pela ideia da dívida é bem pertinente à reflexão que essa geração – assim como a minha, dos nascidos nos anos 1970 – faz sobre os acontecimentos políticos e econômicos das últimas décadas na América Latina. Sentimos as perdas em setores muito básicos das nossas vidas, como o acesso à educação e o pensamento mesmo que rege as escolhas políticas feitas de cima para baixo nesse setor. Vem à mente a ideia de dívida no sentido amplo, como da dívida com os mortos – do vulcão na Colômbia, do terremoto no México, ou da construção de Brasília, realizada sobre os cadáveres dos operários mortos em acidentes de trabalho que nunca foram retirados e nomeados, e que não constam na falsa história gloriosa de ordem e progresso sem amor. A dívida com a condição opressora sobre o gênero feminino, com as narrativas dos anônimos, com a necessidade de fazer uma história a contrapelo, aparecem nesse importante projeto artístico.

Desejos sem direção

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Crítica a partir do espetáculo Anatomia do Fauno, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Parece importante despir-se de eventuais preconceitos e julgamentos morais para assistir ao espetáculo Anatomia do Fauno, trabalho realizado pelo coletivo Teatro da Pomba Gira, de São Paulo, que traz como importante elemento inspirador o desregramento que permeia a vida e a obra do “mal-comportado” poeta francês Artur Rimbaud (1854-1891). Dedicada a reunir e converter em cena diferentes fisionomias do homoerotismo, a montagem praticamente dispensa a palavra e encontra na linguagem visual da performance o seu esteio, constituindo-se a partir de uma série de quadros ao mesmo tempo independentes e articulados, sobretudo quando consideramos o universo temático que igualmente os envolve.

Conduzida por mais de uma dezena de atores, a peça se insere em um amplo conjunto de espetáculos recentes que recusam moralismos sobre corpo e sexualidade, articulando-se em certo sentido, como uma resposta artística ao crescimento do conservadorismo no cenário sócio-político brasileiro. Em Anatomia do Fauno, no entanto, o que se experimenta é uma improvável combinação entre atmosferas míticas, sem tempo ou lugar, das quais o fauno mencionado no título rapidamente se apresenta como símbolo central e um dos eixos da peça, e contornos bastante concretos e essencialmente contemporâneos, reforçados, por exemplo, pelo uso de aparelhos e aplicativos eletrônicos em determinados momentos da encenação.

Imersos, logo de início, em uma espécie de “açougue-underground”, assistimos à chegada do fauno – meio homem, meio bicho – a uma cidade povoada por numerosos corpos masculinos. Somos convocados, então, a reconhecer em nós mesmos certa curiosidade sobre o corpo do outro, assim como sobre as possibilidades de encontro e troca entre esses corpos. Testemunhamos, então, a sucessivos embates que de um modo geral remetem a paixões intensas, violentas e fugazes, traduzidas em vigorosas relações de atração e repulsa estabelecidas entre os corpos que se movem diante de nós.

Desprovidos de personagens ou ainda de uma narrativa a ser contada, tais corpos se alinham em um estado performático e pouco humanizado, aparentemente mais propício a tensões do que propriamente a afetos – ainda que as fronteiras entre tais noções muitas vezes se borrem, claro. E mesmo que boa parte dessas acontecimentos culminem em encontros entre dois ou mais performers, o que se tem ali, ao menos num primeiro momento, são corpos autocentrados e guiados sobretudo pelos próprios desejos, mostrando-se pouco interessados na verticalização das relações estabelecidas com os outros corpos que encontram em cena.

Seja, portanto, a partir de metáforas ou situações bastante concretas, tais quais as que remetem aos aplicativos já mencionados, mas também a encontros fortuitos em banheiros públicos, por exemplo, o espetáculo não raro nos apresenta vestígios de um sistema social que impele à competição, à comparação e ao individualismo, deslocando, em certo sentido, a vigorosa ideia de obsolescência programada também ao campo dos desejos.

Se as relações entre os performers são quase sempre fugazes, o mesmo não acontece com boa parte dos quadros que estruturam o espetáculo, os quais frequentemente se estendem até o ponto de se esgotarem. Enquanto algumas vezes esse recurso denota justamente a perda – ou a falta – de sentido das ações trazidas à cena, em outros momentos, o que se verifica é um certo desgaste do recurso, provocando uma sensação de repetição ou permanência em um mesmo estado de coisas.

Desse modo, apesar da liberdade e da libertinagem que desde o início dão o tom do espetáculo, o caminho construído pela sucessão de quadros que integram Anatomia do Fauno talvez não encontre – e nem procure – a atmosfera de plenitude e esplendor um dia almejada por Rimbaud. Pelo contrário: mesmo quando se organizam em um grande grupo, substituindo os iniciais embates por composições coletivas situadas entre a festa, a orgia e o ritual, os múltiplos corpos que habitam a cena parecem ser colocados, ali, como equivalentes. Com isso, mesmo após a impactante entrada de um corpo feminino em cena, parece haver pouco espaço para a emergência de singularidades ou perspectivas que atribuam nuances mais complexas ao coletivo de corpos então formado.

Criação repleta de significados abertos, na qual mais se apresenta um contexto do que se entrega crítica ou reflexões sobre ele, Anatomia do Fauno deixa ao público o papel de experimentar, testemunhar ou julgar o que vê em cena. Enquanto alguns espectadores podem torcer o nariz para o excesso de “imoralidade” trazida ao palco, outros decerto saem ressentidos pelos raros momentos de efetiva presentificação do público, sobretudo quando consideramos a recorrente tensão estabelecida entre palco e plateia.

Sendo assim, àqueles minimamente familiarizados a práticas e imagens homoeróticas, o espetáculo termina por oferecer uma justaposição de acontecimentos visuais bastante potentes, mas pouco propícios a gerar deslocamentos de perspectiva em relação ao universo investigado. Àqueles menos familiarizados ao mesmo universo, o espetáculo pode, de fato, impressionar, mas corre o risco de apenas reiterar, sem acusar, defender ou adensar, características e comportamentos estereotípicos associados ao já bastante mal-compreendido e simplificado “universo gay”.

A dívida como horizonte, herança e história

Foto: Ana Laura Leardini
Foto: Ana Laura Leardini

Crítica a partir do espetáculo O que fazíamos em 1985?, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Há, decerto, uma lógica perversa que permeia a prática de empréstimos e a contração de dívidas, recurso tão familiar ao Estado quanto ao cidadão brasileiro e, quiçá, latino-americano. Filhos de nações que já nascem endividadas por um passado-presente de intensa exploração, há muito naturalizamos também a subordinação a modos de vida vindos de fora. Contraímos, então, por vias bastante distintas, dívidas que se referem tanto àquilo que éramos e tentamos deixar de ser, quanto aos modelos externos que tomamos como objetivos que jamais alcançaremos. E, enquanto permanece esse imperativo, parece não haver, de fato, muitos caminhos para que tais dívidas sejam superadas.

Pois é justamente a temática da dívida que serve como eixo do espetáculo O que fazíamos em 1985?, trabalho que se organiza em três episódios caracterizados por recursos e linguagens artísticas bastante distintos, ligados a pesquisas dos grupos [pH2| Estado de Teatro (Brasil), La Maldita Vanidad (Colômbia) e Lagartijas Tiradas al Sol (México). Formados, em sua maioria, por artistas nascidos ao longo dos anos 1980, os grupos não por acaso tomam as trajetórias de seus pais, mães e governantes – ou seja, quase sempre de integrantes de uma geração anterior – como universo de análise sobre a perpetuação de dívidas recentes que claramente ainda pairam sobre nós.

Somos apresentados, ao longo do espetáculo, a pais, mães e governantes, constantemente desafiados por economias em crise, Estados enfraquecidos e a permanente sombra do imperialismo estadunidense – ou, como é comum aos nossos dias, de um imperialismo internacional. Testemunhamos, assim, a momentos históricos e contextos sociais cujos complexos sentidos, se é que existem, até hoje nos demandam grandes esforços de reconstrução.

Atravessados por histórias que remetem a desastres políticos, econômicos e também naturais, os três episódios nos põem diante de desafios e soluções encontradas por esses países e seus povos no decorrer de caminhos marcados pelo desejo de galgar alguns degraus no que se costumava chamar de “ordem mundial”. Desafiados por processos tardios de industrialização e urbanização, assim como pela abertura econômica a produtos, mercados e eventos “internacionais”, os contextos apresentados pelos quadros de O que fazíamos em 1985? parecem trazer como traço comum, seja nos níveis pessoal ou nacional, constantes processos de readequação a relações de subordinação e colonização que se estendem às esferas econômica, cultural e comportamental.

Intitulado O Retrato da Mulher Endividada, o primeiro episódio é composto por um filme no qual imagens ficcionais ganham tratamento documental, reunindo mulheres que foram mães nos anos 1980 e que constroem, juntas, a história da personagem Helena Fracasso, uma espécie de síntese da experiência da dita classe média brasileira ante o contexto que sucedeu a redemocratização do país. Chama bastante atenção, nesse caso, a escolha de um ponto de vista feminino para tratar do tema, a partir de cômicas provocações sobre a tardia inserção da mulher no precário mercado de trabalho brasileiro, concomitantemente à aceleração do consumismo no país – tudo isso sob a onipresença da televisão e da publicidade entre os meios de (des)informação da população.

No segundo episódio, O Retrato do Homem Endividado, passamos da linguagem audiovisual a moldes bastante tradicionais do teatro, a partir de uma narrativa conduzida por três irmãos que se encontram após a morte do pai, o qual deixa-lhes como herança uma casa em ruínas e uma dívida difícil de se pagar. Aos poucos, no entanto, o contexto familiar é perturbado pela presença de uma vizinha rica, “americanizada” e bastante ambígua, responsável por cobrar dos irmãos certa dívida que não contraíram, mas, sim, lhes pertence. Também contribuem para a desestabilização da encenação recorrentes e impactantes aparições de um bombeiro que alerta tanto os atores quanto o público sobre uma iminente catástrofe de amplo significado.

Ainda que atravessadas por aviões, táxis e até mesmo uma curiosa e resistente tartaruga de estimação, a direção e a dramaturgia deste episódio parece apostar na imobilidade dos personagens – e da própria situação –  como questão a ser problematizada. Pressionados pelas catástrofes anunciadas por seus visitantes, assim como pela entrada de “duplos” que lhes servem como canais mais brutos de expressão, os três irmãos gradativamente deixam escapar traumas e revelam, entre outras coisas, certo complexo de inferioridade em relação a vizinhos de dentro e fora do país.

Deixando de lado a linguagem ficcional e as múltiplas metáforas presentes no quadro anterior, a sequência que encerra o espetáculo, intitulada O Retrato do País Endividado, recorre a uma linguagem bastante direta para estabelecer um interessante paralelo entre experiências de endividamento compartilhadas por Brasil e México durante os anos que precederam grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Frequentemente defendidos pela mídia e pelo Estado como signos de certa ascensão internacional, tais eventos são associados, em cena, a desastres naturais de incontestáveis consequências sociais.

Ao combinar elementos do teatro documentário e da performance, o quadro que encerra O que fazíamos em 1985? ganha força nas imagens e ações construídas diante do espectador. A construção textual, por outro lado, ainda parece carecer de um tratamento mais aprofundado em relação à questão do endividamento no contexto latino-americano. Organizada como uma sucessão de depoimentos, notícias e comentários sobre a história recente de Brasil e México, tal construção apoia-se – sobretudo no caso brasileiro – em informações e reflexões já conhecidas por boa parte do público, assim como parece perder contundência ao simplesmente citar recentes acontecimentos do noticiário nacional, sem indicar ou problematizar, de fato, suas relações com a relevante reflexão que serve como eixo ao ambicioso projeto artístico que constitui este trabalho.