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Em defesa da desordem

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Crítica a partir do espetáculo Stereo Franz, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

Logo de início, já se percebe que há algo de estranho na banda que recebe o público do espetáculo Stereo Franz, realizado pela companhia [pH2] Estado de Teatro, de São Paulo. Sob o comando de um virtuoso vocalista com trajes de açougueiro, a banda assume o palco do improvisado bar onde se organizam os espectadores, criando uma atmosfera de tensa empatia que contamina os primeiros momentos do espetáculo. Enquanto isso, Franz e Maria, personagens aos quais ainda seremos apresentados, cruzam por várias vezes o espaço, dançando e beijando-se como se fossem pessoas comuns, como se fossem apenas mais dois freqüentadores daquele bar. Mas eles não são.

Inspirada em Woyzeck, obra mais reverenciada do dramaturgo alemão George Buchner, a montagem recria à própria maneira a história de seu personagem-título – aqui Franz – e sua esposa, chamando atenção à loucura e à violência que surgem a partir de quadros sociais marcados por degradação, precariedade e subordinação aos mandos e desmandos do outro. Ainda que tal situação de subordinação fique clara pelos constantes chamados – prontamente atendidos – que ambos recebem de seus “superiores”, rapidamente se vê Franz quanto Marie, sua esposa, apresentam alguns desvios.

Enquanto ele enxerga e fala demais, por vezes tomando para si o sofrimento causado por boa parte das opressões da história e do mundo, Marie não consegue parar de se mexer, como se de fato já não coubesse no estreito lugar social que lhe parece reservado. Em permanente trânsito entre o bar onde estamos e o espaço externo ao teatro, o qual acessamos pela porta de entrada, quase sempre aberta, e também por imagens geradas por câmeras instaladas na área externa e exibidas em televisores instalados dentro do bar, como parte da cenografia da montagem.

A partir desse jogo de entrar e sair, de ocupar o campo e o extracampo, constituem-se dois universos ao mesmo tempo conectados e bastante distintos, marcados, respectivamente, por sucessivos monólogos dirigidos ao público e ações performáticas cuja potência se apóia, sobretudo, em aspectos visuais e composições entre os corpos dos atores e os diferentes espaços que integram a área externa. De um lado, o bar surge como uma arena delirante, na qual somos constantemente atravessados por relatos e reflexões em que ciência, misticismo e invenção se misturam de modo perturbador. De outro, a área externa serve como mecanismo de inserção das personagens em um contexto mais concreto de existência, reforçado pela presença de um lixeiro que, em meio às próprias atividades, vez ou outra faz companhia a Franz e Marie.

Trazendo os olhos e a língua como recorrentes órgãos-metáforas que remetem às capacidades de enxergar a realidade e de se expressar sobre ela, Stereo Franz parece defender a consciência e a voz como importantes ferramentas de transformação, ainda que, no fim das contas, o desenrolar dos acontecimentos parece deixar pouca esperança em relação à possibilidade de mudança.

Gradativamente, Franz, Marie e também o lixeiro rebelam-se, cada um ao próprio modo, em relação a uma realidade cujo horizonte de aspirações lhes parece bastante restrito. Os esvaziados – e por vezes cômicos – discursos conduzidos pelo vocalista-cientista-açougueiro e a tecladista-vidente-astróloga passam, então, a conviver com recorrentes questionamentos e reflexões de Franz acerca de vidas que, tal qual sua própria existência, parecem valer muito pouco.

“Por que Deus não apaga o Sol com um sopro, para que tudo gire na desordem?”, pergunta Franz, à certa altura, convertendo em voz a recém-tomada consciência sobre uma ordem social que pouco o favorece. “Rodem, girem, rodem”, repete insistentemente, na sequência, lançando ao público um apelo sobre a importância de se mudar a ordem das coisas, de se movimentar (como Marie?), de não se acomodar em um sistema social tão injusto quanto cruel, do qual a fuga parece sempre mais possível do que a luta pela transformação.

Por vezes trazendo à cena gritos e gestos transbordantes, a montagem parece trazer o direito à voz como uma de suas reivindicações centrais. Ao explorar de modo quase permanente a tênue fronteira entre a consciência e o delírio, entre a subordinação e a proposição de novas ordens, Stereo Franz nos convoca a pensar a institucionalização de privilégios, a naturalização da desigualdade e, em momento pertinente, a eleição de corpos e vidas que valem menos do que outros – “muertos que no hacen ruído”.

O espectador, um intruso

Crítica da peça Stereo Franz, do grupo [pH2]: estado de teatro

II Bienal de Teatro da USP

A tarefa a cumprir neste breve texto é fazer uma crítica de Stereo Franz, peça do grupo [pH2]: estado de teatro, que está na programação da II Bienal de Teatro da USP. A peça parte de Woyzeck, de Georg Büchner, texto muito usado no teatro por grupos ou encenadores que desejam trabalhar com poéticas da fragmentação e/ou com recursos da encenação contemporânea. A ideia de uma “tarefa a cumprir” aparece aqui porque a prática da crítica nem sempre pode se dar ao luxo de ser exclusivamente espontânea e criativa. Às vezes a crítica tem que tentar dar conta de uma tentativa de diálogo que pode estar condenado a uma conversa de surdos.

Muitas vezes a crítica é um embate ideológico, como quando há um desencontro entre o pensamento sobre teatro da crítica e o pensamento sobre teatro dos artistas cuja obra está em questão. O caso aqui pode não ser o da simples crítica negativa, talvez se trate da exposição de uma divergência com relação a um ponto específico do teatro que é a relação dos artistas com os espectadores – enquanto proposta de elaboração poética, algo que se dá tecnicamente, como parte do trabalho e não como consequência subjetiva do acaso e das afinidades aleatórias.

Os recursos usados no espetáculo compõem praticamente um checklist de elementos das poéticas contemporâneas do final do século XX: a recusa do drama, o uso do audiovisual, a presença de línguas estrangeiras, textos proferidos em microfones, um espaço externo que o espectador só vê em parte, a mistura de linguagens (com a presença da música ao vivo, por exemplo), referências (no caso da música) à cultura pop ou a canções de apelo popular, uma opacidade na lida com os sentidos e, por fim, uma adesão à estranheza como norte para os elementos da cena. Assim, a peça se apresenta como um exercício formal sobre o teatro, mas com um vocabulário poético já estabelecido, que parte do público de teatro já encaixa em poucos minutos em categorias dadas, como teatro experimental, teatro alternativo, teatro contemporâneo, etc.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

O exercício sobre a opacidade da linguagem, reiterada com a sobreposição de elementos, corre o risco de desencadear uma dinâmica de anulação. Por mais que se deseje dar menos atenção à produção de sentido e lidar com o espetáculo por outras vias, a busca pelo sentido não nos abandona – ela é da natureza da sociedade em que vivemos, podemos tentar neutralizá-la, mas é ingênuo acreditar que podemos nos livrar dela. Os vídeos, expostos em televisores com resolução de imagem precária, fica restrito aos que estão mais próximos dos aparelhos. O que acontece no espaço externo também fica distante demais para quem não está de frente para a porta. Assim, em Stereo Franz, buscar o sentido nas palavras e frases que conseguimos, com esforço, discernir é tudo o que nos resta. Com isso, o texto ganha um protagonismo que não combina com os esforços de polifonia e sobreposição de camadas da encenação.

Soma-se a essas condições o fato de que Woyzeck tem um papel canônico na história do teatro – e um papel canônico enquanto texto – mesmo que as formas da dramaturgia não obedeçam a regras prévias nem tenham gerado novas regras. Resulta que o texto – um texto clássico – permanece como núcleo do espetáculo. Aparentemente tentando não fazê-lo, a peça acaba por reiterar uma noção textocêntrica do teatro, na qual o que é importante (o conteúdo) é anterior à cena ou está por trás de uma superfície (o espetáculo) que se precisa desbastar.

Mas o que me parece um problema nuclear é que a peça estabelece uma relação exclusivamente cerebral com o espectador, que deve estar interessado em refletir sobre os problemas formais das artes cênicas, que deve se entreter com a identificação dos recursos técnicos e tentar adivinhar o que as opções estéticas querem dizer sobre o material a partir do qual se está trabalhando. Essa concepção exclusivamente cerebral toma o corpo do espectador como um corpo estranho, que deve ser tratado (reiteradamente) como corpo estranho, que praticamente deve ser expelido do teatro. O corpo do espectador não é bem-vindo. A sensorialidade da peça opera apenas pela via do incômodo, do desconforto, sempre na mesma nota. Isso se percebe especialmente na atitude dos atores para com o público.

A encenação coloca público e atores no mesmo plano espacial, mas os atores são os donos do espaço: os espectadores têm que se encolher para que os artistas se desloquem e façam as suas cenas, para não atrapalhar. A relação ator-espectador é impositiva, vertical. As falas são gritadas, muitas vezes cuspidas nos espectadores. Uma atriz se desloca de maneira atabalhoada, servindo Campari nos copos espalhados pelas mesas, sem se incomodar se está derrubando a bebida em alguém. O espectador, se está no teatro, tem que sofrer as consequências. A proximidade proposta é apenas espacial, não há relação de convívio nem possibilidade de diálogo. Essa foi a impressão que tive da peça, mas o que me intriga é que essa não parece ser a intenção do grupo. Talvez tudo isso seja consequência da falta de uma reflexão mais apurada sobre a condição do espectador no teatro em 2015 e os modos de trabalhar isso na poética da cena.

De imagens, estados, belezas e vaidades

Crítica da peça Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores

II Bienal de Teatro da USP

Em cartaz na SP Escola de Teatro e integrando a programação da II Bienal de Teatro da USP, Anatomia do fauno do Teatro da Pombagira – Coletivo de Criadores apresenta uma dramaturgia de estados com imagens da vida sexual homoafetiva na solidão da vida na cidade. Com direção de Marcelo D`Avilla e Marcelo Denny, o elenco formado por 21 homens e uma mulher, Camilla Ferreira, realiza movimentos predominantemente coreográficos e alguns poucos dos quais se pode vislumbrar uma narrativa, uma ideia de cena mais identificada com o teatro. Assim, não temos personagens, mas figuras praticamente despersonalizadas, corpos mais que pessoas. As imagens são por vezes alegóricas, por vezes literais.

O espetáculo tem dois momentos, norteados por sentidos opostos. O primeiro, mais longo e mais tenso, mostra os corpos numa perspectiva sexual violenta, solitária, nada romântica, em que líquidos, fluidos corpóreos e externos se misturam e se espalham, muitas vezes respingando o espectador. A ideia da proximidade física do espectador parece condizente com a poética das imagens que talvez perca a dimensão de plasticidade à distância. Algumas imagens são fortes, têm presença e uma estranha beleza, mas outras são apenas explícitas e reiterativas, o que pode provocar uma oscilação de interesse no espectador. A duração de alguns quadros também contribui para certo esvaziamento. O esgarçamento acaba por jogar luz sobre a vaidade do ator por trás do trabalho, enfraquecendo o trabalho em si. No segundo momento, isso se desfaz, mas voltaremos a essa parte mais à frente.

Foto: Hélio Beltrânio.
Foto: Hélio Beltrânio.

É perceptível que o grupo realiza a sua proposta neste espetáculo. No entanto, algumas questões da proposta mesma podem ser brevemente discutidas aqui, também como problemas gerais do teatro, mais que da peça especificamente, embora esses problemas estejam ali. Uma delas é a ideia de entrega – o que estimula o problema da vaidade acima mencionado. Acontece com frequência quando um ator ou uma atriz está fazendo um trabalho que demanda um esforço físico exacerbado ou uma exposição pessoal além do comum, que ele ou ela fiquem envaidecidos da própria entrega. Isso também acontece porque é comum que as pessoas fiquem elogiando esse tipo de desempenho. Por mais que o teatro seja feito de méritos compartilhados, os trabalhos individuais também merecem ser celebrados, certamente. O problema é quando o valor de desempenho da entrega se sobrepõe ao trabalho e fica visível na cena.

A relação com o espectador também pode ser levantada. É uma espécie de recalque do teatro querer incomodar o espectador pela condição mesma de ser espectador. O espetáculos de artes cênicas constituem a única categoria de obras de arte que simplesmente não acontecem sem espectador. Mesmo a performance art pode ser realizada sem espectador, tendo apenas registro audiovisual ou fotográfico e não deixa de ser performance. Peça de teatro sem espectador é ensaio. Por que então querer que o espectador deixe de ser “apenas” espectador, “meramente” um espectador, se essa é uma condição ontológica do teatro? A ideia de sujar o espectador, deixar sua roupa manchada ou com cheiro da mistura de líquidos e fluidos que se espalham pelo chão do espaço cênico é anacrônica nesse sentido. A querela do teatro consigo mesmo continua sendo uma discussão válida? Não superamos isso ainda?

Na segunda parte, acontece uma mudança de estado significativa, que chega como um alívio e consegue atingir uma leveza imprevisível, tendo em vista a tristeza e a agonia da primeira parte da peça. E o que me apareceu muito bonito é que a transição parece se dar justamente com a entrada em cena de uma mulher. Os atores encenam um convite a uma pessoa da plateia que de pronto aceita e se junta à cena. Percebemos em um instante que se trata de uma combinação prévia, até porque eles não ficam tentando nos enganar muito tempo. Logo ela se despe e inicia uma coreografia com eles. Sua presença traz uma alegria contagiante para a cena e toda a movimentação se torna uma grande celebração, da qual alguns espectadores são gentilmente convidados a tomar parte. Nesse ponto, com as vaidades menos evidentes e uma relação mais amigável com o espectador, o espetáculo se encerra com uma virada cheia de esperança para a vida lá fora.

Rios de carne, osso e poesia

Foto: Jennifer Glass.
Foto: Jennifer Glass.

Crítica a partir do espetáculo A cidade dos rios invisíveis, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Por baixo do cimento que reveste boa parte das grandes cidades brasileiras, rios invisíveis correm, como podem, em direção ao mar. Muitas vezes deslocados de seus leitos naturais, tais rios ganham, sob a superfície da cidade, fisionomias que em muito se diferem das nascentes que, perto ou longe dali, lhes dão origem. E quanto menor é o leito, quanto maior é a impermeabilização, mais forte se torna a correnteza desses rios, que sobrevivem contra tudo e contra todos, em busca de um mar que, no meio ou no fim da história, lhes possa acolher.

Sobre o mesmo cimento que endurece e impermeabiliza as grandes cidades, correm outros rios. Às vezes feitos de metal, correndo sobre trilhos que conectam os centros às periferias. Às vezes feitos de carne e osso, correndo fortes, ainda que cansados, em longos trajetos que ligam a casa e o trabalho, deixando pouco tempo para aspectos da existência que ultrapassem a mera e árdua luta pela sobrevivência. É sobre todos esses rios, ao que parece, que se constitui o espetáculo “A cidade dos rios invisíveis”, realizado pelo coletivo Estopô Balaio (de) Criação, Memória e Narrativa, com sede no bairro Jardim Romano, na Zona Leste São Paulo.

Construído a partir de um longo diálogo entre moradores do bairro e artistas que há cinco anos o escolheram como território de trabalho e inspiração, o espetáculo começa em uma estação de trem situada no centro da capital paulista. Nessa estação, somos convidados a embarcar numa viagem em direção à periferia da cidade, onde se concentram muitos daqueles que apostam nos centros urbanos como destino após deixarem para trás suas nascentes. Damos início, então, a uma clara operação de deslocamento, tanto em relação às protegidas salas geralmente associadas ao acontecimento teatral, quanto à própria vivência da cidade.

Ao longo de mais ou menos 40 minutos, somos estimulados a experimentar a viagem como uma experiência estética, sensorial e repleta de sentidos, embalada por uma contínua peça sonora a que temos acesso por meio de fones de ouvido distribuídos no início do espetáculo. Estruturada a partir de uma complexa composição entre canções, narrações poéticas, sons de rio e depoimentos de moradores do bairro Jardim Romano, a peça se vale de simultaneidades e justaposições para estimular no espectador uma atitude ao mesmo tempo atenta e relaxada, capaz de converter em experiência e vida o tempo geralmente “perdido” no transporte público.

Como um dos eixos dessa peça sonora, figura a saga dos “pequenos deuses” que habitam as periferias das cidades, continuamente criando e recriando seus espaços de vida. Enquanto parte dessas narrativas chama atenção pelo lirismo com que trata a vivência da periferia, outra parcela apresenta de modo direto os desafios enfrentados pelos moradores dessas comunidades, dentre os quais ganham destaque a difícil convivência com chuvas e enchentes.

Estimulados pelo que ouvimos e também pelo que vemos através das janelas do trem, lembramos que as cidades estão em permanente construção. Seguindo o curso do rio de metal, percebemos ao redor tanto pequenas casas de alvenaria construídas com as próprias mãos quanto conjuntos habitacionais que, sob o ritmo acelerado do trem, por vezes se assemelham a complexos penitenciários. Ao longo do caminho, também há espaço para alguns respiros verdes na paisagem, assim como para estruturas industriais abandonadas cujas dimensões criam um potente contraste em relação às habitáveis “caixas de fósforo” que vemos em diversos pontos do trajeto.

Ao chegar na estação Jardim Romano, no entanto, deixamos de ver a cidade à distância e passamos a fazer parte dela. Atores e espectadores formam, então, um mesmo rio do qual, no qual pouco a pouco desembocam outros cursos d’água. Resultado de uma colaboração entre atores “estrangeiros” que conduzem a viagem de trem e atores “nativos” que nos recebem no bairro, o espetáculo propõe, daí em diante, uma espécie de cortejo por ruas e becos da comunidade, tendo como destino final o rio que delimita a outra margem do bairro. Devido à forte chuva que caía no dia da apresentação que gerou esta crítica, entretanto, foi necessário adaptar o espetáculo à área externa da sede do coletivo, onde nos acomodamos, juntos, em uma espécie de sarau.

A partir de procedimentos relacionados ao teatro documentário, somos brevemente introduzidos pelo diretor do espetáculo, João Júnior, a fragmentos de histórias de diferentes moradores do bairro, os quais deixam fluir suas correntezas em nossa direção. Donos de suas próprias narrativas, tais moradores nos apresentam, por meio de poesias, músicas, performances e breves cenas teatrais, a realidades marcadas pela resistência aos caprichos do capital e das grandes cidades, assim como pela lida com uma natureza que sazonalmente reivindica seu espaço.

À problemática convivência com chuvas e enchentes, inicialmente apresentada como eixo central do espetáculo, novas camadas temáticas se acrescentam, como, por exemplo, a migração de nordestinos para as periferias da capital paulista. Imersos em uma encenação que ganha força à medida em que revela seu extracampo, nos tornamos, a cada instante, mais integrados ao contexto social que nos recebe. Ali o orgulho se sobrepõe à opressão, assim como uma inegável sensação de pertencimento parece compensar os deslocamentos – geográficos e sociais – comuns aos participantes do acontecimento teatral e performático paulatinamente constituído entre atores e espectadores.

Reiterando, na poesia e na prática, a força da vizinhança e do senso de comunidade entre aqueles que habitam as periferias e regiões mais pobres de qualquer cidade, nos percebemos, pouco a pouco, como parte de um leito simbólico por onde vigorosos rios invisíveis, daqueles feitos de carne, osso e poesia, podem, enfim, correr e desaguar num mar de sentidos e sentimentos que, sempre vale lembrar, são comuns a todos nós.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo:

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Entre o excesso e a escassez

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Condomínio Nova Era, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Seja em São Paulo, Natal, Belo Horizonte ou qualquer outra grande cidade brasileira, são bastante claros e expressivos os efeitos da especulação imobiliária sobre o direito à moradia, garantido pela Constituição de 1988 a todos nós. Diante de um contexto político e econômico que favorece a concentração de terrenos e imóveis nas mãos de poucos, não é de se estranhar o crescente número de moradores de rua nessas cidades, assim como o grande contingente de pessoas que precisam se submeter a condições de moradia que em muito se diferem das estipuladas pela nossa Constituição.

Interessado em explorar essa contradição nacional e inspirado pela experiência de viver durantes alguns meses em uma precária pensão no centro de São Paulo, o dramaturgo Victor Nóvoa escreveu, em 2013, a peça Condomínio Nova Era. Montada no ano seguinte por A Digna Companhia, da qual o autor faz parte, a peça tem direção de Rogério Tarifa, trazendo alguns cortes e acréscimos em relação ao texto original.

Conduzida por seis personagens que tocam suas vidas em um mesmo edifício, a montagem convida o público a acompanhá-los nos momentos que antecedem a desocupação do prédio, após a compra do terreno por uma grande construtora. Como em uma visita aos últimos instantes dessa pequena comunidade, conhecemos cada um dos personagens em seus improvisados ambientes de vida, construídos ante os olhos do público a partir de tapumes, tecidos, antigos eletrodomésticos e incontáveis objetos que inundam a cena. Já se estabelece, a partir de então, um contraste entre o excesso visual que permeia a encenação e a escassez de recursos sugerida pelo contexto que lhe serve como inspiração.

Combinando monólogos direcionados ao público e cenas dramáticas realizadas por duplas de atores, a primeira parte do espetáculo nos oferece retratos mais ou menos breves de cada um dos personagens, suas aspirações e condições de vida. Certo tom de lamento predomina entre os relatos, aos poucos contaminando as relações entre atores e público. Apresentados como fracos, frustrados e fracassados, os personagens pouco deixam ver outras qualidades que poderiam surgir como contraponto e lhes atribuir a devida complexidade. Lançando mão de personagens bastante típicos, tais quais o homem violento, a mulher submissa e o homossexual cômico, o desenvolvimento da história lhes reserva poucas surpresas, como se negasse a possibilidade de transformação e ressignificação da existência.

Às vezes tratados como moradores ou visitantes do condomínio, outras, como se uma quarta parede nos separasse da cena, testemunhamos, num segundo momento da montagem, o acréscimo de um terceiro caminho de fruição. Ao serem informados de que serão despejados do edifício, os personagens se reúnem em um mesmo espaço e de algum modo se mesclam aos seus intérpretes, oferecendo ao público discursos críticos que tratam, entre outras coisas, de opressões de gênero e classe. A esses discursos é adicionada ainda a voz do próprio diretor do espetáculo, que irrompe a encenação para expor ao público dilemas e questões relativos à prática artística.

Chegamos, aí, à última parte do espetáculo, quando um novo personagem passa a mobilizar a história. Representando os interesses do capital sobre a cidade, trata de forma escarnecedora os moradores do condomínio, acrescentando mais um tipo conhecido à alegórica paisagem social construída pela encenação. Num embate em que a raiva e a violência se sobrepõem a outras possibilidades de relação, testemunhamos mais um momento de excessos, no qual uma sucessão de casos de violência são, como numa lista, textualmente apresentados ao público. O excesso visual contamina, então, o próprio texto da peça, deixando pouco espaço simbólico a ser percorrido pelo espectador.

Talvez por reunir, em cena, um excesso de elementos, imagens e discussões, o espetáculo Condomínio Nova Era acaba, em alguns momentos, apenas reproduzindo uma situação que visava criticar. Apesar de oferecer ao público uma experiência teatral ousada e repleta de singularidades estéticas, o trabalho parece encontrar limites ao propôr situações e personagens demasiado estereotipados, enfraquecendo seu diálogo com o contexto contemporâneo e os deslocamentos políticos que o caracterizam. Apoiando-se em tipos conhecidos, assim como em uma visão excessivamente dicotômica sobre o conflito que lhe serve como eixo, deixa dúvidas sobre a capacidade de desestabilizar uma visão simplista em relação ao relevante e complexo fenômeno social que se propõe a problematizar.

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Táticas de visibilidade e reinvenção

Foto: Jennifer Glass.
Foto: Jennifer Glass.

Crítica a partir do espetáculo Página 469, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Estamos na Praça Roosevelt, em São Paulo. Nos aproximamos do fim do expediente, e o movimento da região começa a aumentar. Enquanto algumas pessoas deixam o trabalho, outras se acomodam nos bares do entorno. Como de costume, grupos de jovens invadem diferentes pontos da praça, ao mesmo tempo em que alguns moradores de rua – às vezes solitários, às vezes não – encontram nela um espaço propício a ser habitado, sabe-se lá por quê e por quanto tempo. Reunidos em um mesmo lugar, simultaneamente de todos e de nenhum deles, tais personagens experimentam a praça como um contexto onde se pode viver, em público, capítulos de trajetórias particulares. Tudo corre conforme o costume – como se nada, na verdade, acontecesse ali.

Mas a praça recebe, nesse mesmo fim de tarde, alguns elementos que intrigam seus frequentadores. Afixadas às grades de uma trincheira que a tangencia, há fotografias que se apropriam da escala humana e imediatamente remetem a moradores de rua protegidos com casacos e cobertores. Do outro lado da rua, descansam sobre a calçada alguns corpos de papel machê, gerando nos transeuntes uma curiosidade que os corpos de carne e osso, igualmente espalhados aqui e ali, parecem já não ser capazes de despertar. Tão sutis quanto os bonecos de papel machê, outros corpos silenciosamente se inscrevem no mesmo espaço. Usando giz branco, se apropriam do acinzentado piso da praça como página a ser ocupada com reflexões e histórias que não encontram ouvido entre as apressadas pessoas que transitam pela cidade.

É em meio a essa paisagem, na qual arte e vida intencionalmente se misturam, que tem início o espetáculo Página 469. Realizado pelo Grupo Teatral Engasga Gato, com texto de André Felipe e direção do veterano artista e pesquisador André Carrera, o trabalho é movido pela busca de Getúlio, um funcionário público que misteriosamente abandonou seu posto e, até onde sabemos, passou a viver na rua. Sob o comando de três atrapalhados funcionários de uma curiosa “Liga do Bem”, a busca rapidamente mobiliza espectadores e passantes, envolvendo-nos num bem-humorado jogo de erros e acertos que, entre linhas de visibilidade e invisibilidade, conduzem ao até então desaparecido Getúlio.

A partir desse encontro, o humor quase farsesco que predominava no início da peça se funde a um drama naturalista que remete a trabalhadores confinados em paletós, escritórios e vidas sem sentido. Como contraponto ao peso de tais enquadramentos, tão familiares a todos nós, a rua é apresentada como arena onde cada um, inclusive Getúlio, tem liberdade para reescrever a própria história. Enquanto nosso protagonista decide se volta ou não a vestir seu antigo paletó, somos convocados a olhar ao redor, imaginando as histórias de todos aqueles que, seja por circunstância ou escolha, abrem mão dos próprios passados e encontram na rua a possibilidade de se reinventar.

Enquanto alguns desses corpos reinventados estabelecem a rua como destino final, outros, como Getúlio, são obrigados a confrontar histórias passadas, deparando-se com um contexto em que a luta pela liberdade é frequentemente tratada como loucura. Devolvidos, então, a um sistema que não lhes cabe, deixam pra trás histórias escritas pela metade, assim como casas imaginárias e afetos concretos, construídos em público, no seio da cidade.

Superando visão que trata a cidade como mero ponto de passagem, Página 469 defende o espaço público como palco de histórias e personagens que estamos acostumados a não enxergar. Oferece-se como acontecimento público, no qual mesmo dramas tipicamente burgueses ganham novos significados e sentidos sociais.

Ao converter uma praça em sala de casa, converte também um drama supostamente íntimo em questão de interesse coletivo, reativando um senso de comunidade que muitas vezes se perde nos grandes centros urbanos. E findo o espetáculo de características nada espetaculares, nos deparamos com uma cidade de silêncios profundos, adensados por personagens reais, agora muito mais visíveis, e dezenas de outras histórias que, ao menos por enquanto, ainda não nos foram contadas.

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De volta à sala de aula

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ledores no Breu, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Há quem saiba ler as palavras, mas não o mundo. Há quem saiba ler o mundo, mas não as palavras. É sobre premissas como essas que se constitui o espetáculo Ledores no Breu, realizado pela Cia. do Tijolo a partir de materiais tão diversos quanto a prática pedagógica do educador Paulo Freire e a produção poética do alfaiate Zé da Luz. Conduzida pelo ator pernambucano Dinho Lima Flor sob a direção de Rodrigo Mercadante, a montagem chama atenção às contradições que permeiam a noção de analfabetismo, ampliando seus significados e atribuindo-lhe uma complexidade que muitas vezes nos escapa.

A partir de uma dramaturgia que combina música, poesia, diálogos diretos com o público e uma sucessão de poéticas narrativas guiadas por personagens em processo de alfabetização, temos acesso a um universo em que os sentidos não são dados de antemão, mas construídos em cena, não raro por meio de exercícios pedagógicos ali convertidos em instantes performáticos que convocam a participação do espectador.

Habitado por cadeiras escolares, grandes rolos de papel em branco e alguns pedaços de carvão, o palco remete a uma improvisada sala de aula, revelando, decerto, uma escala mais adequada a adultos que a crianças. Aos poucos, entretanto, essa sala de aula se expande em direção ao público, e nos imbricamos, de fato, em exercícios de leitura, escrita e aprendizado, a exemplo das turmas conduzidas por Paulo Freire e das numerosas escolas para jovens e adultos que, mesmo na surdina e sem grandes incentivos, já há algum tempo vêm transformando a paisagem social brasileira. Segundo dados de 2014, no entanto, ainda passa de 13 milhões o numero de analfabetos no país.

Nina, Paraíba e Brasil são algumas das palavras que, da plateia, reaprendemos a ler e interpretar. Aprendemos também que, se não há caderno, a terra e o corpo podem servir como superfície de escrita. E para além das letras e sílabas que já conhecemos, as palavras ganham, em Ledores no Breu, significados profundos que remontam a experiências e histórias em que aspectos pessoais e sociais frequentemente se imbricam. Por meio de narrativas que tocam em temas caros à realidade brasileira, tais quais o machismo, a reforma agrária, o êxodo rural e a grave desigualdade social – e educacional – que nos acompanha desde sempre, a montagem nos convida a percorrer um caminho político e poético em direção aos múltiplos sentidos das palavras.

Tratadas, ali, como possíveis instrumentos de poder e emancipação, as palavras, sejam escritas ou faladas, ganham ainda outros significados. É por meio delas, afinal, que se constroem memórias, expurgos e confissões. Também apoiam-se nas palavras as falsas promessas, os legítimos protestos e uma série de mecanismos de distinção social dos quais somos, recorrentemente, vítimas e algozes. E quando as palavras correspondem a meros enigmas, tais como as pinturas rupestres aos olhos de boa parte de nós, o não saber é defendido como campo de abertura para a criatividade e a invenção de sentidos, por vezes mais pertinentes e certeiros do que os encontrados no dicionário.

Aprendemos, ainda, que não somente as palavras nos desafiam à leitura, mas também o céu, as cidades, as linhas das mãos e a própria realidade social. Superando em muito o sentido mais óbvio do analfabetismo, que se refere à incapacidade de ler e escrever palavras, o trabalho nos convoca a pensar sobre outros analfabetismos dos nossos tempos, decerto tão ou mais graves que o primeiro, relacionados, por exemplo, aos campos ético, estético, político e afetivo.

Definido pelo próprio intérprete como um espetáculo para “cutucar a pátria”, Ledores no Breu convida o público a retornar à sala de aula e visitar os próprios analfabetismos, afirmando, em certo sentido, a impossibilidade contemporânea do drama burguês e de qualquer obra teatral que disponha o espectador ante uma cena da qual tenha a impressão de não fazer parte. Estamos todos no escuro, afinal, e cabe a cada um de nós encontrar luzes que possam indicar um novo caminho para a sociedade que, a cada dia, construímos juntos.

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“A memória é uma força, não um fardo.”

Crítica da peça Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.

 

O fetiche da miséria e a maldade do outro

Crítica da peça Condomínio Nova Era, do grupo A Digna Companhia

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.