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Sobre Haiti e Brasil, os outros e nós mesmos

Crítica sobre o espetáculo Cidade Vodu, por Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)

MITsp 2016

9 de março de 2016

Uma haitiana canta Abecedário da Xuxa, depois da projeção de um vídeo que registra um militar brasileiro da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) ensinando a música para crianças e jovens do país caribenho. O trajeto que ela faz enquanto canta se dá na noite escura, no chão de terra batida, enlameado; vestida de branco, cabelos longos, ela anda em meio a prédios em ruínas. Essa foi uma das cenas mais emblemáticas do espetáculo Cidade Vodu, do Teatro de Narradores, que estreou na segunda-feira (7) na Vila Itororó Canteiro Aberto, na Bela Vista, dentro da programação da 3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp).

A história do Haiti é marcada pelas consequências do colonialismo e do imperialismo que tanto assolaram a região desde 1492, quando Cristóvão Colombo, defendendo a bandeira da Espanha, chegou por lá. Os índios que viviam naquele território foram completamente dizimados. No século XVII, já sob a possessão da França, a mão de obra africana foi escravizada para o cultivo da cana de açúcar. Acentua-se então uma linha do tempo pontuada por revoltas, repressões e golpes. Na esteira da Revolução Francesa, os africanos se rebelaram e a abolição da escravatura foi conseguida no ano de 1794. A independência do país veio em 1804: o Haiti foi o primeiro país latino-americano a se declarar independente e a primeira República Negra das Américas. A libertação da América espanhola e portuguesa por Simón Bolívar teve grande apoio do Haiti, que emprestou soldados, armas e munição ao venezuelano.

A política colonialista europeia e, depois, norte-americana, continuou em ação no país. Os Estados Unidos, por exemplo, invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Em 1957, inicia-se um regime ditatorial, de repressão militar, que massacrou a população do Haiti. Em 1990, foram realizadas eleições presidenciais livres, mas o padre esquerdista Jean-Bertrand Aristide, que havia assumido o poder, foi deposto por um golpe militar. A Organização das Nações Unidas então impõe sanções econômicas ao país e, depois de um curto período de volta ao poder, Aristide é novamente afastado. O país passa então pela intervenção da ONU.

No artigo O Legado dos Amaldiçoados: uma breve história do Haiti, publicado na Carta Maior, Antonio Lassance faz, em poucas linhas, um resumo bastante significativo: “ (…) A região onde se encontra o Haiti viu, ao longo dos séculos, o massacre de sua população indígena, a escravização de negros trazidos pelo tráfico, a divisão artificial em domínios fabricados ao gosto do colonizador (espanhol e francês), sua separação definitiva em dois Haiti, de um lado, República Dominicana, de outro, as tentativas de reconquista colonialista, a permanente intervenção norte-americana e frequentes golpes de Estado, entre eles o que deu origem a uma das ditaduras mais abomináveis que se pode mencionar (de Papa Doc e Baby Doc, de 1957 a 1986)”.

Desde 2004, o Brasil comanda a ocupação militar no Haiti. A Minustah tem uma ação contraditória, que revela interesses econômicos e políticos, principalmente por parte dos Estados Unidos, enquanto o Brasil assume uma posição de subimperialismo. Como se não bastasse, em 2010, um terremoto assolou o Haiti e, claro, agravou os problemas sociais do país. Segundo números divulgados pela imprensa, mais de 250 mil pessoas morreram e um milhão de pessoas ficaram desabrigadas. Desde então, o Brasil tem recebido imigrantes do Haiti, que vêm em busca do sonho de uma vida mais justa. Chegam aqui e se deparam com a falta de assistência, o racismo, a exploração do trabalho.

Bom, diante de todas essas informações, voltamos ao espetáculo Cidade Vodu, que pode ser visto como um ato de resistência. Se o povo negro se armou e se revoltou contra a escravidão, imprimindo ao colonizador branco uma derrota histórica, os caminhos aqui são outros. São também da ordem da luta contra o estabelecido, uma realidade de opressão, racismo, xenofobia, mas trilham ainda os passos da cumplicidade, ao simplesmente tirarem a plateia de um estado de desconhecimento. Os haitianos (alguns já tinham envolvimento com arte, são músicos, cineastas, outros não) vão eles mesmo à cena para retratar a sua história, para contar as suas dores, para ressaltar e festejar a sua cultura. A presença dos haitianos é uma das forças matriciais do espetáculo; não acompanhamos ali versões atravessadas pelas interpretações ou ressignificações que os brasileiros poderiam ter a partir da convivência com os caribenhos, mas visões dos próprios haitianos.

Peça Cidade Vodu
Cidade Vodu – MIT 2016 – Foto por Mayra Azzi

Os atravessamentos do discurso se dão noutro campo: de que as narrativas podem ser múltiplas e se encaixam em diversos contextos. A escravidão dos negros no Haiti pode revelar muito sobre a escravidão no Brasil, por exemplo. Há ainda deslocamentos no próprio tempo na narrativa, como as questões que dizem respeito ao espaço onde foi apresentado o espetáculo, as casas em ruínas na Vila Itororó. Quem eram as pessoas que moravam ali? Em que circunstâncias elas foram obrigadas a deixar aquele lugar? De que forma reproduzimos o modelo opressor-oprimido nas nossas relações cotidianas?

Estamos falando de um teatro que consegue alinhavar relações estreitas e profícuas tanto com o real quanto com o político, que nos leva a encarar os questionamentos de como o teatro pode dar conta das situações cotidianas de opressão. A concretude desse encontro, pela forma direta como ele se estabelece, leva à construção de uma representação significativa da realidade. São questões que se desprendem do espetáculo e permanecem reverberando, embora a experiência da fruição estética na estreia da montagem tenha sido prejudicada por problemas principalmente de dimensão técnica. Num espetáculo que dependia da linguagem – e que respeita as línguas faladas pelos haitianos -, as legendas não funcionaram em diversas cenas, ou não podiam ser lidas, o que não permitiu o entendimento de muitas situações.

Outro apontamento que precisa ser colocado é a própria questão da itinerância proposta pelo espetáculo, que desperta possibilidades estéticas e significações muito interessantes. Se pensamos, por exemplo, no próprio percurso tortuoso e dificultoso que muitos haitianos fizeram para chegar ao Brasil, ou, mais diretamente, na devastação do país pós-terremoto. Ainda assim, o público não conseguia acompanhar todas as cenas; muitas dimensões de compreensão e de embate foram perdidas por conta das dificuldades do percurso e, também, da fragmentação do espetáculo. A informação de que um dos haitianos perdeu mulher e filho no terremoto foi dada no meio de um momento festivo, de congraçamento com a cultura do Haiti, por exemplo.

Ainda assim, mesmo com todos os problemas da encenação, a experiência é potente, porque nos leva ao confronto. Porque enxerga o espectador como uma testemunha, que vê uma situação se descortinando a sua frente; e, a partir daí, pode construir suas próprias reflexões. A dignidade com que a história é contada nos coloca diante de nós mesmos, a partir das vivências, da história e do olhar do outro.

Registro – Enquanto escrevia esse texto sobre o espetáculo Cidade Vodu, soube da notícia da morte do percussionista Naná Vasconcelos. Um negro de 71 anos, ganhador de oito prêmios Grammy, que reverberava como ninguém a potência ancestral da música. Lembrei, por exemplo, de uma conversa que tive com Naná quando ele ainda idealizava o projeto Língua Mãe, que reuniu crianças da América Latina, Europa e África. Enquanto escrevia, o pensamento estava de alguma forma em Naná. Saudando sua arte, sua história, seu legado

A política ainda desperta paixões

Crítica sobre o espetáculo Ça Ira, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)   

MIT 2016

7 de março de 2016

A política pulsa. Tensiona nervos, acelera o sangue e diz respeito a todos nós.  Ça ira, espetáculo do francês Joël Pommerat, com a Compagnie Louis Brouillard, conduz o público para o núcleo dos acontecimentos que urdiram a Revolução Francesa. É um estímulo ambicioso, que insere a plateia no coração dessa aventura humana, em turnês temporais que projetam o ontem no hoje e trafegam em várias camadas. Em 4h20, três atos, o dramaturgo e encenador leva atores e plateia a uma exaustão revigorosamente crítica, depois de uma avalanche de palavras encarnadas de ações da política e do poder. Do desejo de mudança do homem no seu tempo.

A peça inicia com a convocação dos Estados Gerais em 1788 e segue até a noite de 4 de agosto de 1789, quando os privilégios são abolidos e é legitimada a igualdade de todos os cidadãos. Marco da democracia moderna, esse período retraça o estar no mundo. Há uma profusão anárquica na exposição de fatos e rumores que estremecem a cena. Os espaços do palco e plateia, juntos, acolhem as ações: a residência do rei em Versalhes, o salão dos estados gerais e um distrito eleitoral e a assembleia dos bairros.

O público incluído na ação pode ser encarado como a multidão indecisa, que acompanha e muda de posição a partir das atuações dos revolucionários conservadores, moderados ou radicais. Os atores usam microfones, as intervenções mais violentas que ocorrem fora da cena são materializadas no som. E a iluminação sombria cria os climas dos espaços públicos, inclusive com as luzes da assistência acesas, e os salões privados para os nobres.

Lugar da ficção, a plateia assume a função de assembleia nacional. Mesmo que não seja a invenção da pólvora, a configuração de alguns atores espalhados entre o público é potente. Durante a peça, intérpretes se destacam para falar, outros permanecem nos corredores, colaborando com aplausos, vaias e palavras de ordem. Eles atuam como representantes da nobreza, do clero, do Terceiro Estado, deputados da Assembleia Nacional e da Assembleia Constituinte. Para engrossar, o diretor também escalou atores e não-atores brasileiros, falantes de língua francesa.

Durante o programa Pensamento em Processo, encontro de artistas com o público da MITsp efetivado no Itaú Cultural, no sábado, o diretor explicou que não separa as imagens das palavras em suas produções “para mim é uma coisa única”. E que Ça ira não é um espetáculo político, mas sobre política.

Na sua acepção mais ampla, a política está metida em tudo. Sua razão de existir é o dissenso. A possibilidade de troca simbólica de comunicação, num jogo argumentativo, declarativo, em que princípios e crenças são defendidos num embate de ideias e posições diferentes, numa negociação em que entram muitos verbos, inclusive brigar.

Se o poder é um princípio na política, a justiça ou a liberdade são dispositivos que podem produzir mobilização. O que não é possível esquecer é que todos os seres têm interesses pessoais e coletivos.

Cada personagem de Ça Ira está implicado com sua luta. E para isso gritam, insultam e fazem da oratória uma paixão algumas vezes risível. Integrantes do Terceiro Estado conquistam o direito de fala pública e política, até então dedicado à nobreza, clero e parlamentos. Nessa energia revolucionária salta a intransigência que produz cenas e posturas no elenco que faz ferver o ambiente.

Pommerat convocou para esse campo de batalha não as grandes figuras e mitos históricos. Mas indivíduos desconhecidos que colaboraram para a mudança de rumo. Isso também ajuda a superar o aspecto mais documental. O nomeado é Louis XVI, que enfiado em ternos de Yvain Juillard, defende que é preciso equalizar os impostos, com a inclusão de nobres e do clero como pagadores.

Os discursos ideológicos são incendiários e conduzem para a invenção da democracia. A partir de ideias e visões de mundo contrastantes, são projetados valores e representações de demandas morais e filosóficas. Ao dobrar-se sobre o passado, o encenador francês questiona o futuro.

Mas o diretor é sarcástico com a sociedade do espetáculo. Inventa uma comentarista de uma emissora espanhola, para reforçar que o mundo assiste à Revolução Francesa ao vivo. Ou nas cenas em que anônimos repreendem o rei, por qualquer coisa, e para depois ser fotografado com o soberano e desmaiar de emoção.

Brasil e mundo dos imigrantes

Na sexta-feira da estreia do Ça ira no Brasil, o país foi afetado pela condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal, em mais uma etapa da Operação Lava Jato. Essa atuação provocou debates durante todo o dia e levantou dúvidas sobre a parcialidade do episódio. “Nós precisamos ter provas de simetria, provas de que essas instituições agem de maneira simétrica contra qualquer ator político”, comentou o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle sobre o assunto.

Com essa medida da PF e seus desdobramentos, a reação de Lula e seus aliados, o espetáculo ganhou outras linhas com o real, e possibilitou traçar outros significados com a realidade brasileira, a república e a democracia. Associações e paralelos da encenação com a crise das instituições brasileiras, avanço reacionário, o poder dos grupos dos “3B” – o boi, a bala e a Bíblia – foram inevitáveis.

Mas a ferida de retrocessos se espalha pelo mundo capitalista. Ça ira também aponta para o fluxo de pessoas deslocadas, principalmente as que fogem das guerras. Do seio da revolução francesa encenada é possível vislumbrar uma vigor reivindicatório, a partir da crise dos refugiados e migrantes que chegam à Europa

O encenador investe na força da palavra e na presença dos atores para compor as espessuras desse jogo, entre coro de vozes dissonantes.  O exercício e o aprendizado do poder democrático são árduos e dão sinais de fadiga. Mas o poder de mudar a sociedade, martela Joël Pommerat em Ça ira, está nas mãos de todos.