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É preciso estar atento e forte

Foto: Divulgação.
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Crítica a partir do espetáculo El Rumor del Incendio, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

II Bienal Internacional de Teatro da USP

A concentração do poder em poucas mãos e as variadas táticas desenvolvidas, ao longo da história, para redistribuí-lo servem como eixo ao espetáculo El Rumor do Incêndio, realizado pelo grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol e apresentado na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Tomando alguns movimentos armados do México dos anos 1960 e 1970 como contexto a ser compartilhado e examinado diante do público, a montagem passa pelo Brasil em momento oportuno, quando, já há algum tempo, ruas e – mais recentemente – escolas se tornaram arenas de contestação em relação aos abusos de poder que marcam nossa realidade política. Ao longo dessa revisão por aproximadamente duas décadas de história mexicana, El Rumor del Incêndio problematiza questões como a participação da juventude na luta por mudanças e o uso de violência em ações anti-Estado, assim como as correntes noções de democracia e luta de classes.

“A soberania nacional reside essencial e originalmente no povo. Todo poder público emana do povo e se institui para benefício dele. O povo tem, a qualquer momento, o direito inalienável de alterar ou modificar a forma de seu governo”. Declamado logo nos primeiros instantes do espetáculo, o – utópico? – Artigo 39 da Constituição mexicana é apresentado como uma espécie de estopim da montagem, deixando ver, logo de cara, algumas das numerosas contradições que permeiam a tradução de instrumentos legislativos em efetiva prática social.

Para tanto, o grupo desenvolveu uma dramaturgia ao mesmo tempo fragmentada e claramente guiada por uma personagem central: a antropóloga e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo, nascida em 1944. Integrante da geração anterior à dos três atores que conduzem a cena, Margarita viveu intensamente os conturbados anos 1960 e 1970 e nos apresenta, a partir de uma trajetória que combina pesquisa, ativismo e sucessivos afetos, facetas de uma realidade política que, não por acaso, também nos revela muito sobre outros contextos latino-americanos. A essa trajetória, vez ou outra permeada por acontecimentos íntimos que ultrapassam o dito campo político, são combinados importantes capítulos e personagens da história mexicana, criando eficientes contrapontos que humanizam experiências vividas somente a distância, e, quase sempre, a partir de mediações, por atores e espectadores.

Faz bastante sentido, então, que vários desses fatos históricos sejam trazidos ao público a partir de cenas nas quais os atores manipulam numerosos brinquedos e miniaturas, projetando suas imagens em tempo real sobre uma tela instalada no fundo do palco. Se tal estratégia, por um lado, reforça a distância entre as histórias ali contadas e a experiência daqueles que as levam à cena, por outro, também remetem a governantes que tratam seus povos e territórios como se, em um permanente exercício de manipulação, apenas praticassem um violento jogo de tabuleiro cujas injustas regras há muito já se conhece.

Tal escolha também se articula à importância que a juventude ganha em El Rumor do Incêndio. Presa pelo Estado mexicano antes de completar 25 anos, Margarita é apenas uma entre os vários jovens que, em diversas partes do mundo, afirmam a possibilidade de mudança ao dedicar parte considerável de suas existências à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Não é de se estranhar, portanto, que as máscaras utilizadas pelos atores em outros momentos do espetáculo remetam a rostos masculinos e envelhecidos, como aqueles que há anos habitam o Congresso brasileiro. Seja no México ou no Brasil, afinal, a falta de representatividade parece apresentar-se como raiz da falsa democracia que experimentamos, constituindo-se como recorrente empecilho à construção de sistemas políticos nos quais o povo, de fato, tenha o poder nas próprias mãos. “Quem são esses homens que nos governam? Por que deixamos que nos governem?”, pergunta a atriz e diretora Luisa Pardo, em um dos momentos mais contundentes do trabalho.

Enquanto brinquedos, miniaturas e risíveis máscaras de plástico emprestam certo aspecto lúdico à encenação, numerosos documentos e depoimentos que ocupam, em outros instantes, a mesma tela de projeção afirmam o peso da tradição documental dentro da montagem e do próprio trabalho realizado pelo grupo, que somente neste ano trouxe também ao Brasil os espetáculos Monserrat e Derretiré con un Cerillo la Nieve de un Volcán – ambos relacionados ao que se chama de teatro documentário.

Referindo-se a contextos de franca desigualdade política, geralmente marcados pelo monopólio do uso da força pelo Estado, o espetáculo problematiza ainda o papel da violência durante ações revolucionárias. Mesmo que ofereça mais questionamentos do que respostas a esse respeito, El Rumor do Incêndio nos provoca a pensar sobre certo senso comum que aceita e muitas vezes justifica a violência do Estado, ao mesmo tempo em que demoniza qualquer ação “não pacífica” organizada por aqueles que não detêm o poder.

Aparentemente acalmadas ao longo das décadas que marcaram a falaciosa transição entre regimes ditatoriais e democráticos, dada a violência estrutural da qual todos somos vítimas, cúmplices e testemunhas, tais reivindicações têm ganhado, nos últimos anos, um fôlego novo, frequentemente embalado por jovens que já não se acomodam sob estruturas e arranjos sociais cada vez mais arcaicos. Se as histórias de luta dos anos 1960 e 1970 muitas vezes nos conduzem à imagem de uma juventude que falhou por não concluir a revolução almejada e alcançar suas reivindicações, resta-nos saber que histórias serão contadas sobre aqueles que, sobretudo desde 2011, devolveram ao debate público uma luta contínua e multifocal pelo respeito aos direitos humanos e civis reservados a cada um de nós.

Nomeando Jacy

Crítica de Jacy, peça do Grupo Carmin

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

“A memória é uma força, não um fardo.”

Crítica da peça Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.