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Um autêntico documento ficcional

Crítica da peça Instrucciones para abrazar el aire, do grupo Malayerba, do Equador

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

Um dia antes de assistir à peça Instrucciones para abrazar el aire, participei como mediadora de um encontro entre artistas da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, no qual estava o grupo Malayerba, do Equador, com os criadores Arístides Vargas, Charo Francés e Gerson Guerra. No debate, tive a oportunidade de ouvir o grupo falar, com muita clareza e propriedade, sobre o próprio trabalho e sobre a peça que está na programação da mostra. Aqueles que estavam presentes puderam conhecer antes de assistir ao espetáculo os fatos que motivaram a criação. Charo e Arístides nos contaram a história de uma casa em La Plata, que funcionava como imprensa clandestina. Como fachada, ativistas assumiam o papel de cozinheiros que faziam conservas de coelho a escabeche e as conservas eram embaladas com os papéis do jornal que produziam, e que só assim circulava. Em 1976 a casa foi alvejada por fora. Todos os que estavam lá dentro morreram, com exceção de uma criança, ali sequestrada e até hoje não encontrada. A história foi contada para eles por Chicha Mariani, a avó dessa menina desaparecida cujos pais foram assassinados no ataque à casa.

Não por saber previamente da história – que qualquer espectador pode saber procurando informações sobre a peça na Internet, lendo sinopses e críticas do espetáculo – mas por ouvir uma apresentação feita pelos criadores em uma conversa, minha percepção da peça já contava com uma sensação de vínculo, de empatia pelo trabalho. Faço essa observação preliminar porque, como crítica, artista e espectadora, sou defensora das mediações. Vejo a importância da mediação como forma de aproximação entre artistas e público, algo que deveria ser sempre uma prioridade nas iniciativas de teatro – especialmente quando estamos em contato com culturas de teatro que não são aquelas com as quais lidamos no cotidiano de um determinado território cultural.

A história é apresentada por três casas, com três casais: os avós que procuram a neta, os ativistas cozinheiros de coelhos e os vizinhos que observam a casa clandestina. Em cada casa, uma ideia de teatro diferente onde a dupla trabalha com linguagens diversas. A alternância de gêneros é uma premissa da dramaturgia. Passamos rapidamente de cenas cômicas com chistes descompromissados para cenas em que é impossível rir do que está sendo dito e para outras em que o lirismo nos faz ver a beleza apesar do horror. O espetáculo se constrói com diferentes registros de interpretação, que se intercalam e se alimentam uns dos outros. Cada casal assume um tom, uma temperatura, um tempo diferente. Escutamos as histórias por diferentes pontos de vista, que nos demandam que estejamos prontos para mudar de expectativa a cada cena. E parece que a atividade constante de mudança na recepção vai aos poucos derrubando os muros, abrindo brechas para chegar na sensibilidade do espectador. É como acompanhar um festival: a cada espetáculo, as premissas são diferentes, cada um tem as suas regras, temos que adaptar as nossas expectativas, abandonar saberes e adquirir outros a cada vez que começa um novo espetáculo. Nossas noções de teatro são abaladas (felizmente) e aprendemos a ver cada peça de acordo com as suas questões, não só com as nossas.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Mas, no que diz repeito a verdades e realidades, me parece interessante e perfeitamente adequada a ideia de documento ficcional, um aparente paradoxo, com o qual a peça é apresentada. Quantos documentos produzidos durante os períodos ditatoriais na América Latina não são de certo modo “ficcionais”, ou melhor, mentirosos? Quantas confissões proferidas ou assinadas por coerção da tortura não são uma “ficção” construída pelo medo? E o que dizer dos documentos dos filhos e filhas, netos e netas, cuja identidade foi roubada e alterada nos inúmeros casos de sequestros? A questão é que entre mentira e ficção a diferença é grande. A mentira é a antítese da verdade, mas a relação da verdade com a ficção é mais complexa. Os procedimentos de criação ficcional estão presentes em todas as formas de escrita historiográfica, a elaboração das narrativas que são comprometidas com a verdade conta necessariamente com a imaginação, com a ficcionalização, como método para criar coerência. Daí que toda historiografia é criativa e, em alguma medida, ficcional.

O aparente paradoxo da ideia de documento ficcional é que a primeira palavra afirma uma verdade e a segunda a desmente, mas não anula sua proposição. O documento ficcional aqui não deixa de ser um documento, mas sua verdade é de outra natureza. A ficção é um meio para orbitar em torno da verdade, essa abstração que nunca poderemos conhecer de fato. Com a confecção deste documento ficcional, o Malayerba está encenando historiografia, colocando verdades em jogo a partir de elaborações poéticas, narrando fatos para que possamos escutar essas narrativas de outra maneira – porque não podemos esquecê-las mas também não conseguimos simplesmente repeti-las.

Neste encenar historiografia, há um fator determinante, uma camada de produção de sentido que é também produção de presença: os corpos de Charo e Arístides como documentos de uma história recente, em que a autenticação das verdades está carimbada na carne da experiência de suas histórias de vida. São corpos historiadores, expressão que tenho usado para falar do trabalho de atores que são narradores e testemunhas, rastros e evidências de acontecimentos dos quais precisam falar. A condição mesma de migrantes, o conhecimento profundo das narrativas de violências das ditaduras, a solidez da trajetória de mais de 30 anos de teatro, tudo isso inscreve nos seus corpos a habilidade para escrever suas histórias no espaço tridimensional do teatro, com a elaboração poética necessária, através da oralidade, da potência da palavra falada no teatro.

Sabemos que a experiência não é passível de compartilhamento, que não somos capazes de sentir a experiência do outro. Mas também não conseguimos deixar de tentar. No teatro, com a generosidade dos corpos que se dão a falar, parece que a escuta dá um passo adiante nesse sentido, impossível como abraçar o ar.

Rios de carne, osso e poesia

Foto: Jennifer Glass.
Foto: Jennifer Glass.

Crítica a partir do espetáculo A cidade dos rios invisíveis, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Por baixo do cimento que reveste boa parte das grandes cidades brasileiras, rios invisíveis correm, como podem, em direção ao mar. Muitas vezes deslocados de seus leitos naturais, tais rios ganham, sob a superfície da cidade, fisionomias que em muito se diferem das nascentes que, perto ou longe dali, lhes dão origem. E quanto menor é o leito, quanto maior é a impermeabilização, mais forte se torna a correnteza desses rios, que sobrevivem contra tudo e contra todos, em busca de um mar que, no meio ou no fim da história, lhes possa acolher.

Sobre o mesmo cimento que endurece e impermeabiliza as grandes cidades, correm outros rios. Às vezes feitos de metal, correndo sobre trilhos que conectam os centros às periferias. Às vezes feitos de carne e osso, correndo fortes, ainda que cansados, em longos trajetos que ligam a casa e o trabalho, deixando pouco tempo para aspectos da existência que ultrapassem a mera e árdua luta pela sobrevivência. É sobre todos esses rios, ao que parece, que se constitui o espetáculo “A cidade dos rios invisíveis”, realizado pelo coletivo Estopô Balaio (de) Criação, Memória e Narrativa, com sede no bairro Jardim Romano, na Zona Leste São Paulo.

Construído a partir de um longo diálogo entre moradores do bairro e artistas que há cinco anos o escolheram como território de trabalho e inspiração, o espetáculo começa em uma estação de trem situada no centro da capital paulista. Nessa estação, somos convidados a embarcar numa viagem em direção à periferia da cidade, onde se concentram muitos daqueles que apostam nos centros urbanos como destino após deixarem para trás suas nascentes. Damos início, então, a uma clara operação de deslocamento, tanto em relação às protegidas salas geralmente associadas ao acontecimento teatral, quanto à própria vivência da cidade.

Ao longo de mais ou menos 40 minutos, somos estimulados a experimentar a viagem como uma experiência estética, sensorial e repleta de sentidos, embalada por uma contínua peça sonora a que temos acesso por meio de fones de ouvido distribuídos no início do espetáculo. Estruturada a partir de uma complexa composição entre canções, narrações poéticas, sons de rio e depoimentos de moradores do bairro Jardim Romano, a peça se vale de simultaneidades e justaposições para estimular no espectador uma atitude ao mesmo tempo atenta e relaxada, capaz de converter em experiência e vida o tempo geralmente “perdido” no transporte público.

Como um dos eixos dessa peça sonora, figura a saga dos “pequenos deuses” que habitam as periferias das cidades, continuamente criando e recriando seus espaços de vida. Enquanto parte dessas narrativas chama atenção pelo lirismo com que trata a vivência da periferia, outra parcela apresenta de modo direto os desafios enfrentados pelos moradores dessas comunidades, dentre os quais ganham destaque a difícil convivência com chuvas e enchentes.

Estimulados pelo que ouvimos e também pelo que vemos através das janelas do trem, lembramos que as cidades estão em permanente construção. Seguindo o curso do rio de metal, percebemos ao redor tanto pequenas casas de alvenaria construídas com as próprias mãos quanto conjuntos habitacionais que, sob o ritmo acelerado do trem, por vezes se assemelham a complexos penitenciários. Ao longo do caminho, também há espaço para alguns respiros verdes na paisagem, assim como para estruturas industriais abandonadas cujas dimensões criam um potente contraste em relação às habitáveis “caixas de fósforo” que vemos em diversos pontos do trajeto.

Ao chegar na estação Jardim Romano, no entanto, deixamos de ver a cidade à distância e passamos a fazer parte dela. Atores e espectadores formam, então, um mesmo rio do qual, no qual pouco a pouco desembocam outros cursos d’água. Resultado de uma colaboração entre atores “estrangeiros” que conduzem a viagem de trem e atores “nativos” que nos recebem no bairro, o espetáculo propõe, daí em diante, uma espécie de cortejo por ruas e becos da comunidade, tendo como destino final o rio que delimita a outra margem do bairro. Devido à forte chuva que caía no dia da apresentação que gerou esta crítica, entretanto, foi necessário adaptar o espetáculo à área externa da sede do coletivo, onde nos acomodamos, juntos, em uma espécie de sarau.

A partir de procedimentos relacionados ao teatro documentário, somos brevemente introduzidos pelo diretor do espetáculo, João Júnior, a fragmentos de histórias de diferentes moradores do bairro, os quais deixam fluir suas correntezas em nossa direção. Donos de suas próprias narrativas, tais moradores nos apresentam, por meio de poesias, músicas, performances e breves cenas teatrais, a realidades marcadas pela resistência aos caprichos do capital e das grandes cidades, assim como pela lida com uma natureza que sazonalmente reivindica seu espaço.

À problemática convivência com chuvas e enchentes, inicialmente apresentada como eixo central do espetáculo, novas camadas temáticas se acrescentam, como, por exemplo, a migração de nordestinos para as periferias da capital paulista. Imersos em uma encenação que ganha força à medida em que revela seu extracampo, nos tornamos, a cada instante, mais integrados ao contexto social que nos recebe. Ali o orgulho se sobrepõe à opressão, assim como uma inegável sensação de pertencimento parece compensar os deslocamentos – geográficos e sociais – comuns aos participantes do acontecimento teatral e performático paulatinamente constituído entre atores e espectadores.

Reiterando, na poesia e na prática, a força da vizinhança e do senso de comunidade entre aqueles que habitam as periferias e regiões mais pobres de qualquer cidade, nos percebemos, pouco a pouco, como parte de um leito simbólico por onde vigorosos rios invisíveis, daqueles feitos de carne, osso e poesia, podem, enfim, correr e desaguar num mar de sentidos e sentimentos que, sempre vale lembrar, são comuns a todos nós.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo:

http://www.cooperativadeteatro.com.br/10mostra/blog/

Três modos de abraçar o ar

Foto: Guillermo Turin.
Foto: Guillermo Turin.

Crítica a partir do espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

São certamente muitas as faces da Ditadura, e também os ângulos sob os quais se pode experimentá-la. E se o Brasil tem vivido, nos últimos anos, um momento propício a revirar e reconhecer a presença da Ditadura em sua história, movimento semelhante decerto acontece em outros pontos da America Latina, como deixa ver o espetáculo Instrucciones para abrazar el aire, criado em 2012 pelo grupo Malayerba, com sede em Quito, no Equador. Tendo como ponto de partida a história real de uma criança seqüestrada em 1976, durante um ataque realizado por oficiais da Ditadura Argentina, o espetáculo recorre a três pontos de vista bastante distintos para recriar tal narrativa.

Construída, então, a partir de uma composição entre tais pontos de vista, fragmentados em breves cenas sempre interpretadas pelo mesmo casal de atores, a dramaturgia de Aristides Vargas – que também divide a cena com Charo Francés – se equilibra entre diferentes experiências de tempo, espaço e relação com o público, oferecendo ao espectador distintas possibilidades de se identificar e se relacionar com a história ali contada, assim como com a própria Ditadura – seja ela qual for. Atacar, defender e simplesmente surgem, então, como três modos de se relacionar com uma realidade que se mostra impossível de ignorar.

A partir de um registro quase farsesco e claramente cômico, o casal de cozinheiros ataca a Ditadura, produzindo subversivos jornais que servem como embalagem para inusitadas “conservas de coelho”. E, como se tal ação se inevitavelmente desdobrasse em outras de mesma natureza, eles também se atacam o tempo todo, seja fisicamente, com um maço de temperos, ou ainda por meio de discussões corriqueiras que colocam em cheque desde as hierarquias inerentes a qualquer ofício e também a importância de se manter à sombra dos acontecimentos, lembrando que qualquer tipo de destaque sempre traz seus custos.

O casal de vizinhos, por outro lado, apesar dos poucos quilômetros que o separa do conflito anunciado, apenas observa os acontecimentos ao redor, como se nada tivesse a ver com aquilo, ainda que estejamos, claro, todos imersos em um mesmo contexto social e humano. Reproduzindo, em cena, uma atitude tipicamente burguesa, o casal de vizinhos desconfia, analisa e julga, mas faz tudo isso da janela do próprio apartamento, mantendo uma distância aparentemente segura em relação à narrativa que, aos poucos, se desenvolve em cena.

Situados, ali, como vítimas da Ditadura, o casal de avós se defende. Permanentemente abalados pelo sumiço da neta, assim como pela morte dos pais da menina, eles se defendem do permanente risco de esquecer-se daquilo que passaram. Defendem-se da possibilidade de perderem o fio da meada e o sentido da vida, e, por isso, todos os dias, insistentemente, contam a mesma historia um ao outro, uma história que lhes afirma o próprio vinculo e lhes devolve o sentido de permanecer neste mundo.

É a partir das próprias memórias um que eles se protegem de uma tristeza profunda que vez ou outra se aproxima, é com poesia que se protegem das cores que se apagam após a perda de uma criança, assim como do vazio que se revela após a tragédia social e familiar que lhes serve como marca definitiva. Mesmo deslocados em relação, continuam defendendo-se da Ditadura e de suas marcas, ao compartilharem, diariamente, o desejo e a esperança de encontrar a neta perdida, e ao pactuarem, também diariamente, pela preservação desta memória que lhes cabe embalar e abraçar como uma criança.

Cada um a sua maneira, os três casais compartilham com o público seus modos de se envolver em uma mesma realidade, ao mesmo tempo concreta e imaginada. Convertidas em utopias revolucionárias, dramas burgueses ou memórias íntimas, tais realidades poderiam dissolver-se no tempo e no ar, mas mantêm-se vivas ao serem abraçadas pelo teatro, ali tratado como uma arena propícia ao compartilhamento de experiências – sejam passadas ou presentes – que não devem ser naturalizadas nem esquecidas.

 

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015:

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Entre o excesso e a escassez

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Condomínio Nova Era, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Seja em São Paulo, Natal, Belo Horizonte ou qualquer outra grande cidade brasileira, são bastante claros e expressivos os efeitos da especulação imobiliária sobre o direito à moradia, garantido pela Constituição de 1988 a todos nós. Diante de um contexto político e econômico que favorece a concentração de terrenos e imóveis nas mãos de poucos, não é de se estranhar o crescente número de moradores de rua nessas cidades, assim como o grande contingente de pessoas que precisam se submeter a condições de moradia que em muito se diferem das estipuladas pela nossa Constituição.

Interessado em explorar essa contradição nacional e inspirado pela experiência de viver durantes alguns meses em uma precária pensão no centro de São Paulo, o dramaturgo Victor Nóvoa escreveu, em 2013, a peça Condomínio Nova Era. Montada no ano seguinte por A Digna Companhia, da qual o autor faz parte, a peça tem direção de Rogério Tarifa, trazendo alguns cortes e acréscimos em relação ao texto original.

Conduzida por seis personagens que tocam suas vidas em um mesmo edifício, a montagem convida o público a acompanhá-los nos momentos que antecedem a desocupação do prédio, após a compra do terreno por uma grande construtora. Como em uma visita aos últimos instantes dessa pequena comunidade, conhecemos cada um dos personagens em seus improvisados ambientes de vida, construídos ante os olhos do público a partir de tapumes, tecidos, antigos eletrodomésticos e incontáveis objetos que inundam a cena. Já se estabelece, a partir de então, um contraste entre o excesso visual que permeia a encenação e a escassez de recursos sugerida pelo contexto que lhe serve como inspiração.

Combinando monólogos direcionados ao público e cenas dramáticas realizadas por duplas de atores, a primeira parte do espetáculo nos oferece retratos mais ou menos breves de cada um dos personagens, suas aspirações e condições de vida. Certo tom de lamento predomina entre os relatos, aos poucos contaminando as relações entre atores e público. Apresentados como fracos, frustrados e fracassados, os personagens pouco deixam ver outras qualidades que poderiam surgir como contraponto e lhes atribuir a devida complexidade. Lançando mão de personagens bastante típicos, tais quais o homem violento, a mulher submissa e o homossexual cômico, o desenvolvimento da história lhes reserva poucas surpresas, como se negasse a possibilidade de transformação e ressignificação da existência.

Às vezes tratados como moradores ou visitantes do condomínio, outras, como se uma quarta parede nos separasse da cena, testemunhamos, num segundo momento da montagem, o acréscimo de um terceiro caminho de fruição. Ao serem informados de que serão despejados do edifício, os personagens se reúnem em um mesmo espaço e de algum modo se mesclam aos seus intérpretes, oferecendo ao público discursos críticos que tratam, entre outras coisas, de opressões de gênero e classe. A esses discursos é adicionada ainda a voz do próprio diretor do espetáculo, que irrompe a encenação para expor ao público dilemas e questões relativos à prática artística.

Chegamos, aí, à última parte do espetáculo, quando um novo personagem passa a mobilizar a história. Representando os interesses do capital sobre a cidade, trata de forma escarnecedora os moradores do condomínio, acrescentando mais um tipo conhecido à alegórica paisagem social construída pela encenação. Num embate em que a raiva e a violência se sobrepõem a outras possibilidades de relação, testemunhamos mais um momento de excessos, no qual uma sucessão de casos de violência são, como numa lista, textualmente apresentados ao público. O excesso visual contamina, então, o próprio texto da peça, deixando pouco espaço simbólico a ser percorrido pelo espectador.

Talvez por reunir, em cena, um excesso de elementos, imagens e discussões, o espetáculo Condomínio Nova Era acaba, em alguns momentos, apenas reproduzindo uma situação que visava criticar. Apesar de oferecer ao público uma experiência teatral ousada e repleta de singularidades estéticas, o trabalho parece encontrar limites ao propôr situações e personagens demasiado estereotipados, enfraquecendo seu diálogo com o contexto contemporâneo e os deslocamentos políticos que o caracterizam. Apoiando-se em tipos conhecidos, assim como em uma visão excessivamente dicotômica sobre o conflito que lhe serve como eixo, deixa dúvidas sobre a capacidade de desestabilizar uma visão simplista em relação ao relevante e complexo fenômeno social que se propõe a problematizar.

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro 2015:

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Táticas de visibilidade e reinvenção

Foto: Jennifer Glass.
Foto: Jennifer Glass.

Crítica a partir do espetáculo Página 469, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Estamos na Praça Roosevelt, em São Paulo. Nos aproximamos do fim do expediente, e o movimento da região começa a aumentar. Enquanto algumas pessoas deixam o trabalho, outras se acomodam nos bares do entorno. Como de costume, grupos de jovens invadem diferentes pontos da praça, ao mesmo tempo em que alguns moradores de rua – às vezes solitários, às vezes não – encontram nela um espaço propício a ser habitado, sabe-se lá por quê e por quanto tempo. Reunidos em um mesmo lugar, simultaneamente de todos e de nenhum deles, tais personagens experimentam a praça como um contexto onde se pode viver, em público, capítulos de trajetórias particulares. Tudo corre conforme o costume – como se nada, na verdade, acontecesse ali.

Mas a praça recebe, nesse mesmo fim de tarde, alguns elementos que intrigam seus frequentadores. Afixadas às grades de uma trincheira que a tangencia, há fotografias que se apropriam da escala humana e imediatamente remetem a moradores de rua protegidos com casacos e cobertores. Do outro lado da rua, descansam sobre a calçada alguns corpos de papel machê, gerando nos transeuntes uma curiosidade que os corpos de carne e osso, igualmente espalhados aqui e ali, parecem já não ser capazes de despertar. Tão sutis quanto os bonecos de papel machê, outros corpos silenciosamente se inscrevem no mesmo espaço. Usando giz branco, se apropriam do acinzentado piso da praça como página a ser ocupada com reflexões e histórias que não encontram ouvido entre as apressadas pessoas que transitam pela cidade.

É em meio a essa paisagem, na qual arte e vida intencionalmente se misturam, que tem início o espetáculo Página 469. Realizado pelo Grupo Teatral Engasga Gato, com texto de André Felipe e direção do veterano artista e pesquisador André Carrera, o trabalho é movido pela busca de Getúlio, um funcionário público que misteriosamente abandonou seu posto e, até onde sabemos, passou a viver na rua. Sob o comando de três atrapalhados funcionários de uma curiosa “Liga do Bem”, a busca rapidamente mobiliza espectadores e passantes, envolvendo-nos num bem-humorado jogo de erros e acertos que, entre linhas de visibilidade e invisibilidade, conduzem ao até então desaparecido Getúlio.

A partir desse encontro, o humor quase farsesco que predominava no início da peça se funde a um drama naturalista que remete a trabalhadores confinados em paletós, escritórios e vidas sem sentido. Como contraponto ao peso de tais enquadramentos, tão familiares a todos nós, a rua é apresentada como arena onde cada um, inclusive Getúlio, tem liberdade para reescrever a própria história. Enquanto nosso protagonista decide se volta ou não a vestir seu antigo paletó, somos convocados a olhar ao redor, imaginando as histórias de todos aqueles que, seja por circunstância ou escolha, abrem mão dos próprios passados e encontram na rua a possibilidade de se reinventar.

Enquanto alguns desses corpos reinventados estabelecem a rua como destino final, outros, como Getúlio, são obrigados a confrontar histórias passadas, deparando-se com um contexto em que a luta pela liberdade é frequentemente tratada como loucura. Devolvidos, então, a um sistema que não lhes cabe, deixam pra trás histórias escritas pela metade, assim como casas imaginárias e afetos concretos, construídos em público, no seio da cidade.

Superando visão que trata a cidade como mero ponto de passagem, Página 469 defende o espaço público como palco de histórias e personagens que estamos acostumados a não enxergar. Oferece-se como acontecimento público, no qual mesmo dramas tipicamente burgueses ganham novos significados e sentidos sociais.

Ao converter uma praça em sala de casa, converte também um drama supostamente íntimo em questão de interesse coletivo, reativando um senso de comunidade que muitas vezes se perde nos grandes centros urbanos. E findo o espetáculo de características nada espetaculares, nos deparamos com uma cidade de silêncios profundos, adensados por personagens reais, agora muito mais visíveis, e dezenas de outras histórias que, ao menos por enquanto, ainda não nos foram contadas.

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De volta à sala de aula

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Crítica a partir do espetáculo Ledores no Breu, por Daniel Toledo (Horizonte da Cena/DocumentaCena)

Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

Há quem saiba ler as palavras, mas não o mundo. Há quem saiba ler o mundo, mas não as palavras. É sobre premissas como essas que se constitui o espetáculo Ledores no Breu, realizado pela Cia. do Tijolo a partir de materiais tão diversos quanto a prática pedagógica do educador Paulo Freire e a produção poética do alfaiate Zé da Luz. Conduzida pelo ator pernambucano Dinho Lima Flor sob a direção de Rodrigo Mercadante, a montagem chama atenção às contradições que permeiam a noção de analfabetismo, ampliando seus significados e atribuindo-lhe uma complexidade que muitas vezes nos escapa.

A partir de uma dramaturgia que combina música, poesia, diálogos diretos com o público e uma sucessão de poéticas narrativas guiadas por personagens em processo de alfabetização, temos acesso a um universo em que os sentidos não são dados de antemão, mas construídos em cena, não raro por meio de exercícios pedagógicos ali convertidos em instantes performáticos que convocam a participação do espectador.

Habitado por cadeiras escolares, grandes rolos de papel em branco e alguns pedaços de carvão, o palco remete a uma improvisada sala de aula, revelando, decerto, uma escala mais adequada a adultos que a crianças. Aos poucos, entretanto, essa sala de aula se expande em direção ao público, e nos imbricamos, de fato, em exercícios de leitura, escrita e aprendizado, a exemplo das turmas conduzidas por Paulo Freire e das numerosas escolas para jovens e adultos que, mesmo na surdina e sem grandes incentivos, já há algum tempo vêm transformando a paisagem social brasileira. Segundo dados de 2014, no entanto, ainda passa de 13 milhões o numero de analfabetos no país.

Nina, Paraíba e Brasil são algumas das palavras que, da plateia, reaprendemos a ler e interpretar. Aprendemos também que, se não há caderno, a terra e o corpo podem servir como superfície de escrita. E para além das letras e sílabas que já conhecemos, as palavras ganham, em Ledores no Breu, significados profundos que remontam a experiências e histórias em que aspectos pessoais e sociais frequentemente se imbricam. Por meio de narrativas que tocam em temas caros à realidade brasileira, tais quais o machismo, a reforma agrária, o êxodo rural e a grave desigualdade social – e educacional – que nos acompanha desde sempre, a montagem nos convida a percorrer um caminho político e poético em direção aos múltiplos sentidos das palavras.

Tratadas, ali, como possíveis instrumentos de poder e emancipação, as palavras, sejam escritas ou faladas, ganham ainda outros significados. É por meio delas, afinal, que se constroem memórias, expurgos e confissões. Também apoiam-se nas palavras as falsas promessas, os legítimos protestos e uma série de mecanismos de distinção social dos quais somos, recorrentemente, vítimas e algozes. E quando as palavras correspondem a meros enigmas, tais como as pinturas rupestres aos olhos de boa parte de nós, o não saber é defendido como campo de abertura para a criatividade e a invenção de sentidos, por vezes mais pertinentes e certeiros do que os encontrados no dicionário.

Aprendemos, ainda, que não somente as palavras nos desafiam à leitura, mas também o céu, as cidades, as linhas das mãos e a própria realidade social. Superando em muito o sentido mais óbvio do analfabetismo, que se refere à incapacidade de ler e escrever palavras, o trabalho nos convoca a pensar sobre outros analfabetismos dos nossos tempos, decerto tão ou mais graves que o primeiro, relacionados, por exemplo, aos campos ético, estético, político e afetivo.

Definido pelo próprio intérprete como um espetáculo para “cutucar a pátria”, Ledores no Breu convida o público a retornar à sala de aula e visitar os próprios analfabetismos, afirmando, em certo sentido, a impossibilidade contemporânea do drama burguês e de qualquer obra teatral que disponha o espectador ante uma cena da qual tenha a impressão de não fazer parte. Estamos todos no escuro, afinal, e cabe a cada um de nós encontrar luzes que possam indicar um novo caminho para a sociedade que, a cada dia, construímos juntos.

Publicado no site da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015:

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Nomeando Jacy

Crítica de Jacy, peça do Grupo Carmin

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

 

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

“A memória é uma força, não um fardo.”

Crítica da peça Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Foto: Jenniffer Glass.
Foto: Jenniffer Glass.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.

 

O fetiche da miséria e a maldade do outro

Crítica da peça Condomínio Nova Era, do grupo A Digna Companhia

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo 2015

 

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.